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sábado, 28 de agosto de 2010

A luz distante por Sergio Martins

Ao meu redor, a luz distante é arremessada contra as árvores, os telhados de cerâmica antiga substituem os ninhos– rejuvenescem e brilham amanhecidos como o caminho estreito que florescendo rumo à colina, parte a campina por trás da casa–; e agora, sob à tardinha tem-perada, o meu estar é um estar-fora-de-si, pois é só assim, com essa queda de temperatura que se é possível cair-em-si.

O firmamento em seu pleno anil sorve o nublado ou-tonal dos olhares, e encostado a uma mangueira observo as pedras acesas e submersas– monumentos que testemunham mundos diferentes–, e ao tocá-las, sou absorvido por uma magia onde vislumbrado, também fico numa transição de mundos posto que o real e o surreal, dentro e fora de mim, é uma junção tão simples e fenomenal como este rio manso que passeia em meu olhar...

Entre as duas mangueiras, o riozinho quieto desliza como sempre deve permanecer: Perto e tangível, conquistado e conquistador; da mesma forma como foi designado para mim. Meus pés se afundam no tapete de areia macia e fresca dessas águas, de modo a mover-me como um peixe solto desfrutando a invencível infância... A sombra recai ligeira; enquanto eu acordo longe, orientado pelos horizontes escondidos em meu íntimo. E outra vez, a luz distante que vem por entre as árvores, abraça o brilho dos meus olhos aventureiros, e penso, ingênua e presunçosamente, que toda a claridade desse quadro só existe para perseguir os meus passos.


Texto inspirado no quadro da sala do apartamento dos pais de Leandro  http://lendonaspontes.blogspot.com/

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Soneto à terra seca por Sergio Martins


Na dispersão daquelas nuvens, choveu no dia de sol
e submergido pelo acústico da vida intra-uterina,
curvei-me qual embrião e feliz como ave de rapina
que se eleva afobada diante de seu tão precioso atol.

As ervas e as flores perfumaram docemente o caminho,
na manhã crescente, quieta, vagarosa e contemplativa
com seus pardais e sua atmosfera simples e inventiva;
como se fosse a límpida transparência do meu anjinho.

A tarde me aliciou em meio a uma fresta prateada e forte
no céu e ela; magra e branca qual ávido copo de leite
deitou-se no leito crepuscular; pois dela eu sou consorte.

Neste andamento, sem as canções, as luzes e as cores do dia,
sobre a pedra dourada me assento arredio de lucidez
sentindo o cheiro da garoa voltar à terra seca que me refugia.

Foto: Google

Do fim do caminho por Sergio Martins


Senti as brisas matinais das primaveras, tentei eternizar os crepúsculos outonais em telas e em escritos, descrever meu íntimo nas noites de verão e dissecar a tristeza dos invernos, mas só descobri mais possibilidades de me encontrar nos caminhos que cediam ruas para eu me perder. E assim, as coisas e as pessoas se voltaram para mim com um novo olhar – pois, tudo o que mudava a minha volta, voltava para mudar tudo em mim, daí a minha estranha visão para o mundo–: as doçuras e amarguras que degustei, as bebidas que provei, os sonhos que me subtraíram o sono, os desejos que me sobrevieram sem permissão alguma, meus desatinos e decepções, meus textos simplistas e repetitivos, meus desenhos tortuosos, minhas músicas defeituosas...

Tudo. Absolutamente, tudo me deu a certeza de que caminhei à vela dos melhores ventos. Em contrapartida às duras penas me foi revelado o tal pulo do gato, de modo que, não apenas contemplei de longe a terra prometida como também abracei o amor à vida e a paixão por essa contraditória existência, ouvi o silêncio divino das montanhas e a sinfonia poética da mulher amada que aprendi a conquistar e apaixonar-me todos os dias, respirei e prendi o romance cotidiano ao meu ser em meio aos anseios capitalistas, de Graça recebi e cultivei extraordinárias amizades, abri mão das vaidades fúteis, experimentei a alegria vívida da criança que nunca se retirou de mim e jamais deixei de criar a arte nos apertos do gueto emocional.

E agora, prostrado à sombra do fim do caminho, o frio todo dessa morte lenta é amenizado pelas chamas que se fortalecem alimentadas pelo encanto da terra em que me enlaço com gratidão. Portanto, ante à iminente e eterna despedida, pelas mãos dos que me amam, arremesso um maço de nobres Crisântemos e uma coroa de Rosas aromáticas no túmulo-altar desse solo paradisíaco, convicto de sossegar totalmente deleitável pelas bênçãos existenciais e que tive um envolvimento de ardente amor com a imortal felicidade e com a sagrada tristeza mesmo nos atalhos em que a escuridão pareceu-me enlouquecer. Enfim, de tudo o que adquiri e que me foi furtado, que vivi e fiz valer e viver, levarei a poesia. A beleza eterna que Deus me apossou e com a qual me casei para além-mar.

Foto: Google

Camisola de seda por Sergio Martins


Ah! Desgraçada camisola de seda! És tão cintilante quando tuas cores vibram brincalhonas com meus olhos e mui brutal tua sedução milagrosa e repentina.

Desaforada camisola de seda, põe-me a fantasiar as loucuras da moça inocente!

Alucinante e trágica és, feito súbita névoa encobrindo a bela paisagem pela qual me antecipo como um sopro quente precedendo o chuvaral na floresta aquecida aos afagos risonhos deste verão.

Se eu pudesse, querida camisola de seda, te abraçaria todo dia; pois sua textura assemelha-se ao vestido de cetim da carne macia que lhe veste para alimentar-me a vida, pois se ela é tua dona és minha também; mas sobre ti não tenho controle. Porque vieste se interpor a nós? Porventura, são tuas as curvas e os declives sinuosos por onde sempre me perco arremessado na escuridão aquentada ao brilho lunar?
Te quero longe de mim, mas a fantasia toda mora em sua nobreza. Porém, abandoná-la seria minha traição, porque igual a mim, valor nenhum tens, e sim, o que possuis. Tu encobres o belo, o corpo sagrado, levas muitas graças ao meu amor; abandonar-te, então, seria lançar fora a mentira que me é vital, parte absoluta de mim: a magia que meus olhos lançam sobre a vida.
 
Ilustração: "pequenos mimos"
Fonte:  http://carlalilianaoliveira.blogspot.com/

Meu ser-outro por Sergio Martins



Jurei sempre desejar e regar a aridez de teu jardim e assim e muito mais, decerto eu faria, posto que, não se pode mudar a alma de um poeta.
As razões, então, seriam nuvens vagarosas atravessando os montes baixios que receberiam copiosas chuvas de regozijo, os corações veriam todas as estrelas rurais se espelhando no lago do bosque silente, lá onde só os olhos amantes têm as mais sábias palavras e, certamente, envolvida de uma enigmática áurea apalparias na água cálida a face transcendente da lua.
As emoções, sem pressa alguma, cada qual, após si, se fariam ternas, intensas, bruscas e efêmeras pairando no ar que as levantariam incessantes e perpétuas.
Mas foi por nenhuma outra razão senão a de desconheceres o desvairo da paixão, feito essa enormidade que me apanhou de súbito e de absurdo que é guiada pela incontrolável poética; que fui vencido e transformado nesse eu-transtornado.
Cada água que bebi de ti foi a melhor porção de minha terra seca, pois nela eu pus minha crescente sede.
Meu Deus, quanta indignação e indagação habitam agora meus lábios secos de Agosto!
E tão cedo, através da lucidez rígida que roubou o feitiço dos meus olhos e pela eterna dor do teu adeus, conheci a transparência dos teus sonhos, a verdade que eu temia, a beleza infinita que já não havia: tu eras meu ser-outro que eu não sabia.
E quanto a ti, eras tu mesma?

Foto: Google

Viajante alado por Sergio Martins


Pelas manhãs de inverno quando o frio é intenso e a chuvinha cai vagarosa feito poeira se evaporando, aquele velho desce do seu casebre no morro e sobe a serra com seu retalhado chapéu de palha, o blusão e a calça de tergal rasgados; desbotados. Enquanto a chuva lhe acaricia o corpo magro e negro, ele segue atento a todo encanto natural da colina, lembrando de sua juventude problemática, da menina mais bonita da escola que namorou mas que o rejeitou por vergonha de sua pobreza, ou pensa, com grande tristeza, de como o tempo foi rápido e severo ao pôr tão depressa os pesos em suas costas agora encurvadas, as dores em seus pés, as rugas e as olheiras no rosto...

A subida cansativa compensada pela esplêndida vista é uma terapia que lhe amaina a azedo de sentir-se inútil, de não ter de volta o emprego perdido injustamente na juventude, de jamais gozar da alegria de ser pai e um homem amado por sua esposa, embora ainda guarde e oferte tanto amor ao seu pobre mundinho e sustente o sonho de ter o seu grande amor.

Desta vez, ele não consegue ir até o alto. Para junto a uma mangueira e se encosta. Tira o chapéu molhado e o sacode, enxuga as lágrimas que começam a misturar-se com o resto da garoa que se dispersa na ventania. Depois de alguns minutos abaixo da mangueira sentindo os badalos inquietos de seu peito, desiste de seguir em frente. Entrega-se ao chão folheado, acende um cigarro e vê um Sabiá sobre o cerco de arame farpado que ignora sua presença continuando imóvel e silente. Ele que sempre sofreu com o temor de tornar-se um mendigo ou abandonado pelos amigos, agora, diante do mágico e solitário pássaro, compreende como os grandes sábios puderam se enveredar sem grandes danos pelo desfiladeiro do isolamento, da sensação de abandono e encontrarem os bosques de toda beleza contraditória, de toda poética triste e prazerosa que só habita os labirintos vazios e silentes da alma.
Aquele viajante alado começa a cantar enquanto o velho sente uma tremenda aflição ao ver nele o seu límpido espelho: alguém que irá para sempre sem jamais ter sido percebido, um ser solitário que tentou a todo custo musicar sua vida com as notas do prazer. O estradeiro voador é um espelho tão luminoso de seu íntimo que ele, andarilho de asas sonhadoras e de canto melancólico, volta para o seu casebre com medo da solidão que lhe assombra desde o dia do seu nascimento. É quando, a passo, desce a estrada enlameada pensando: se fosse rico, não me acometeria tal fado?

E tão logo, vê-se aos pés do seu Calvário particular como se estivesse no altar do seu deus. É aí, na entrada da serra, que ele sempre se vê melhor: por baixo de tudo e de todos; onde sua posição é estar num permanente debruçar sobre o cerco de suas emoções aliviadas do caos suburbano e diário.

Primeiramente, aquieta-se trazendo à memória o encanto do viajante alado, permanece silente por alguns minutos, arrepende-se dos murmúrios soltos em demasia, ignora a presença de seus fantasmas abraçando sua fiel e inseparável amiga solidão e por fim, remete ao seu deus sua música agradecida certo de que a vida continuará sendo uma canção solitária - embora grávida de amores felizes.





Foto: Google

Sob o luar outonal por Sergio Martins


O cavalheiro derrama-se aos prantos quando se lembra da morte do seu amigo cavalo sempre que põe a bota feita com seu couro. O papagaio, outrora brincalhão e repetidor das palavras que lançava sobre ele também emudeceu desde a sua partida.

A angústia do violonista concebeu o seu novo estilo musical: o chorinho.

A lua cheia de vida e grávida de amor minguou e sumiu entre sinistras nuvens no céu do poeta que bebeu a chuva de desgosto. E hoje, ele não viu nenhum Sabiá solitário, nem ouviu o canto deprimido e suicida da cigarra anunciando bom tempo, mas uniu sua aflição e toda aquela inércia entediante às dores do mundo, aliou-se à pandemia, à vergonha pública, ao submundo dos injustiçados e dos que vivem à margem.

Embevecido pela saudade da infância mal aproveitada, trancou a porta, acolheu o medo e a fúria dos refugiados, dos despatriados, dos abandonados e dos forasteiros. Agarrou-se à agonia de um órfão flagelado, à total desesperança de um mendigo em sua velhice e ao descontentamento dos que não crêem em Deus; e assim, esqueceu que o dia seguinte seria, como em todos os anos, feriado do dia do trabalho e não do trabalhador na pátria-amada-mãe-ingentil que sempre o negou um bom emprego embora houvesse procurado por demais; e agora, desempregado e se sentindo mais inútil do que nunca nesses trinta e poucos anos de idade que o presenteia com muitos cabelos grisalhos, como de costume, abre a porta às duas horas da madrugada fria que lhe rouba o sono, recebendo o abraço indiferente da noite que se mostra espelho de sua escuridade e no céu, admira aquela lua que minguou e se escondeu voltando à companhia de suas ilustres estrelas qual homenageada cintilante e esplêndida no teatro dos seus sonhos.
Contudo, ele continuará só e triste, à meia luz da busca de sentidos, de significados e de verdades. E no amanhecer do dia, ele conhecerá, supostamente, a mesma dor de um planeta sem estrela, mas há de se consolar por só ter uma estrela principal para fazê-lo adoecer; agradecido de não estar em Júpiter onde há mais de sessenta luas.
 
Foto: Google

Uma carta sobre um halloween de vergonha por Sergio Martins


E aí meu irmãozão! Tu sabe que não sou muito de curtir baladas. Pra mim, “a balada de uma noite nesta cidade maravilhosa, às vezes me aborda como um murmúrio inquieto de um dia que não pode nascer". Entretanto, não posso negar que ontem tive uma experiência contraditória a este meu raciocínio.
De imediato, acometeu-me um enorme pensamento autocrítico, depois as lembranças daquela fervilhante adolescência. Até que relaxei, mergulhei, nadei na euforia de uma juventude louca que insiste em não me abandonar.

Mas não é que por um instante eu tive vergonha?! Isto mesmo, meu mano, vergonha. Mas uma vergonha esquisita. A vergonha estava na minha miséria que vi nos olhos da menina. Que vergonha, talvez a menina sentiu ao ver meu olhar inebriado (pensei) quando ardido de inibição ela nem quis me encarar! E fiquei ali cabisbaixo, meio sorridente, meio vexado, acreditando em quão rico seríamos se uníssemos a miséria de nosso olhar.

Ah, meu amigão! Só me traz vergonha essa minha tara em apaixonar-me várias vezes e todos os dias pela mesma vida! Na verdade, o que eu amei nela foi meu outro lado: a beleza feliz – a festança incessante que voava bailando de seu corpo extravagante e simples ante à plateia acanhada de meus sentimentos e que por fim, se pôs a desaguar em mim.

E vendo o dia amanhecer, apenas com as frenéticas badaladas do meu íntimo na noite de Halloween, feito um lobisomem em desmanche e um tanto desavergonhado, eu já era outro – no mesmo lugar e sem vítimas.
 
Foto: Google

Quando se ama por Sergio Martins



Eu devia estar doente, como eu mesmo previa,
mas algo estranho e belo me guiou...
Talvez devesse estar mais contente 
como as flores de setembro,
mas a calmaria de uma borboleta me agitou...


Pois quando se ama, há uma contradição,
um fazer-nada-fazer, um dizer-nada-dizer,
o mundo é novidade: toda hora é um primeiro
olhar e todo dia passa a ser o último.


O agora é o melhor presente,
como se a verdade absoluta fosse um 
simples abrir dos olhos e poetizar,
pois como disse Hosea Ballou: 
“A felicidade verdadeira é barata,
mas nós pagamos caro por sua imitação”.



Foto: Google

Marte por Sergio Martins


Nas esquinas de sonatas vi você passar
e o "ali" já não havia...

Nas ladeiras desse amar-te ouvi dizer
que no inverno o florescer é cantar-te,
adorar-te e nessa arte, a Marte eu vou...
 
Foto: Google

Traz a viola por Sergio Martins

Traz a viola.

Preciso dizer- em meu “faz de conta” canto de pássaro- amor e prazer.
Leva tudo embora- nossos contos de fada -
em montes de olhares castanhos: claro caminho e mentiras...
Chame tudo de volta,
leva-me a voltar
a trazer-me de novo
no enlouquecer de rodar por você
e de jamais cansar de me perder.
De florir o canteiro,
de contar e em qualquer canto encantar.

Foto: Google

O mar de teus azuis por Sergio Martins


Mar Azul...

Quero dizer; mas palavras não podem...
Sobra um silêncio de flor...
São ideias mortas no ar.

E pra responder o que não entendo
só desejo o seu olhar.

Longe vou...
Sempre aqui...
Sem prazer no luar
e sem esquecer quem eu sou...
O que é o poder sem a dor
e o amar sem perder?
 
Foto: Google

Balada da senhora mística por Sergio Martins


Do ventre escuro e gélido da serra surge a dama da minha noite vestida de um brilhante por-do-sol descortinando a nebulosidade da colina. Ela vem me encontrar feito estrela principal do meu palco e o tempo se estende agradável, as horas se encurtam e em seu olhar negro vejo um espelho nas águas de mar noturno em que mergulho todo o fosco do meu olhar.

Qual flor de Maio à luz do luar, na noite estrelada ela passa aprisionando os olhos desse menino-homem e desprendida do que se passa em mim ela dança, talvez despercebida de minha presença em seu andar veloz que me repassa o clima de seu corpo veraneio mesmo no nevoeiro e na friagem incomum desse outono.

Ao suave das tardes, a mulher floral carrega uma menina em seus rastros e na mão, uma flor rosa-chá que procurou pelo caminho para me presentear.

A mulher-menina desce o sombrio vale de bicicleta trazendo o som das árvores e me faz sentar à sombra, lhe esperar a vibração dos dedos macios e quentes que hão de dedilhar a pauta desarmônica do meu íntimo. Na fantasia que me aspira a alma sinto um clima festivo no rosto sério da misteriosa senhora. Na ilusão que me eleva o ser à fervura, a bela dona é senhora de mim e me põe a dormir ao tranqüilo de uma esperança prazerosa. Seria nada mais que o meu olhar de moleque pedinte frente à mestria do seu corpo bailando na saia branca que se modela sensual qual violeteira espanhola? Será que é apenas nossa solidão que se atrai e une nosso corpo? É só o deleite da magia dos meus olhos que lançou nela a poesia? É o perfume inebriante da madame que atravessa os limites de minha atmosfera inspiradora ou tudo não passa de mais um amor reprimido que por fim adormecerá em nosso silêncio inconseqüente e vexado?

Só sei que o seu feitiço é irrecusável e que ela, a senhora mística, é branca e ardente ante à tenebrosa e frívola Baía de Guanabara em que nos beijamos para amenizar nossas álgidas solicitudes, sua boca rosal me sela com um beijo-não-beijo e derrama um pólen cuja tristeza de meus lábios se extingue, no seu olhar intrigante há um dizer-nada-dizer onde sua pele é minha-não-minha e seus afagos são meus-não-meus... e assim, ela se vai silente e enigmática pelo caminho de meu descaminho com a flor rósea presa nos admiráveis cabelos não percebendo todo o nobre e primaveril adorno que oferta à minha existência faminta de sua graça.
 
Foto: Google

Opala de fogo por Sergio Martins


A chuva severa, inquieta e talhante estalava no chão sequioso balbuciando aos meus ouvidos o tilintar das asas de um vento peralta e as canções de minha biografia intra-uterina. No frio brando daquela noite era um doce ilustre ver os cabelos alquebrados pelo fosco emocional da bela moça que ondulavam soltos ao berro de um tempo exultante e excitante.

Mas não eram meus os festivos batuques do aguaceiro, pois ela, em mim era um outro pensar... de modo que, onipotente, em todo aquele tempo perdido de meu onírico espaço, permanecera deitada no leito da terra, indiferente ao bailar do clima metamórfico e  imprevisível quanto as suas palavras que eu não pude entender. Sua face rejeitava-me como a areia escaldante no cume do verão, em seus olhos viam-se duas rochas acesas e seu coração revelava-se inacessível como uma Opala de fogo vulcânico.

Todavia, era ela - brita rolando pro meu desespero - quem eu ambicionava, aquela que em esmerilhando-me à alma inteira pelo longo caminho não consegui eternizar aos meus braços devido ao escorregadio de suas aleatórias trilhas...

Foto: Opala de Fogo
Fonte: Google

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Soneto ao pássaro do Jardim Novo por Sergio Martins



Vistes o pássaro sumir ao vento do abandono e chorastes
sem fé no amor, e ele voou alto; mas a graça do mundo
e toda sua musicalidade tornar-se-ia gaiola; rio profundo
desaguando em teu rosto e nas artes que com ele criastes.

Ao tempo em que via esvoaçar a flor de sua harmonia
na chuvarada desigual, um novo jardim se abria
em primavera vívida onde a liberdade lhe sorria;
e ele– livre?– desenganou-se daquele ninho de poesia.

Ele semeou muitas siriguelas e abius, comeu milho, amora e curau.
Fartou-se de açaís, pêssegos, figos nobres, e até de melão de São
Caetano; andou entre ameixas, maçãs, tâmaras e luar de sarau.

E nos dias tristes em que degustou e pranteou em meio às Catléias,
soube que apesar de a simples rosa ser senhora do Jardim Novo,
ele já se tornara dependente do hedonismo das Azaléias.

Foto: Google

Soneto ao lago salgado por Sergio Martins


Do lago, a humilde orla se alegra às muitas conchas,
à limpidez da água, aos quietos e festivos
pés que lhe massageiam investigativos
e mui acarinhados pelo dedilhar das leves ondas.

Que esta harmônica seja assim: apenas simples e sempre.
Onde o espírito e a matéria se desejem com ardência,
qual mar e pescador, arte provisória e com permanência;
como se jamais saíssemos do materno ventre.

A brisa corre fresca e logo as gaivotas deslizam, planam
à sua música eufórica, borboleteando o campo alviverde,
reverenciando os cáusticos amores que não se amainam.

Vem de longe a imensidão de espuma densa e alva que volita,
adornando a ramagem, flutuando à toda superfície, e assim, a
ambiência dessa graça imparcial não consegue ser mais bonita!

Foto da praia de Figueira RJ
Fonte: Google

Soneto de Agosto por Sergio Martins


Novamente, nesse Agosto vejo um fogo de carvão,
e tu, árvore forte - toro seco de lenha branca -,
há de manter por muitos dias o ardor que tranca
a agonia de luar habitante da beleza dessa região.

Pela manhã, as folhas são arremessadas ao chão,
encontro teu cabelo de caju aromático pela banca
e nas minhas roupas; no regelado, sua boca franca
acende a calmaria ao crepúsculo em vermelhidão.

Tua canção é chuva no dia de sol, riso depois de perder
a graça de vencer, teu perfume entra no espaço místico
do meu corpo e me faz um cavaleiro venturoso de viver.

Estrela do meu norte eterno que amaina o anoitecer
antipoético e ilumina a idade rude de meu ser, és
simples, mas em tua grandeza aspiro rejuvenescer.

Fto: Google

Soneto para a lua apaziguante das tardes julinas *************por Sergio Martins*************


A brisa daquele olhar suplantando minhas guerras e fugas,
qual fogo de inverno (tranqüilidade na espera delongada),
e a face abatida da noite na água límpida, negra e gelada,
assistiu meu semblante peregrino sorrir às graças tuas!

Sobre o corpo da árvore frutuosa lavei-me o opróbrio,
ergui a torre forte e sedenta, bebi a luz da fonte escura:
o poço oculto acendeu-me a feliz loucura;
e vazou a dor do ciúme- medo da perda de si próprio.

Ela admirou o meu entardecer, meus lábios ressecados ali,
ao chão, jogados ao tempo vil, como quem vê o mar
pela última vez; recebeu-me – Moça à Janela de Salvador Dali.

Mortificou-se meu corpo outonal às paixões veraneias, sombrias
e silentes, as mágoas foram lançadas no mar primaveril - minha
alma oblíqua inclinou-se para a lua apaziguante das tardes julinas.

Foto: Moça à janela de Salvador Dalí
Fonte: Google

Soneto à Dama da Tarde por Sergio Martins



Pela tarde em chuvisco apreciei teu doce sabor,
sua maciez em meus nervos eletrizados,
sua canção em que meus traumatizados
sentimentos, enfim, acharam a doçura do amor.


A noite do Jardim Novo tem sono e um sonho me ergue,
viajo pelas tardes quentes de Dezembro:
esperança na alegria tardia. E assim, lembro
que o cair do dia é uma espiritualidade que me segue.


Tarde por tarde adentro nesse belo entardecer
em que sou crepúsculo - complexidade posta
no que incendeia de exultação o meu viver.


Por essa infinidade, a morte definitiva jamais será minha anfitriã,
pois, só a Dama da Tarde tenho como visita de honra nesse
além-mundo cuja estranha poética é a única certeza do amanhã.

Foto: A bela da tarde (Belle de Jour), 1967 / Um filme de Luis Buñuel/ França / Italia
Fonte: Google

Soneto da minha casa por Sergio Martins

Não seria só o fato de Vênus estar por sobre Marte
ou o brilho dos seus citrinos e hipnotizantes olhos por si só,
era aquilo que nunca entenderias fazendo-me digno de dó:
o amor que me arrebatava, o presente: a arte pela arte.

Não se tratava da vida encurtada, sem paixão,
em tudo havia o sabor do chocolate, da euforia, do sorvete,
do morango em sua boca e das geleiras petrificando o mar verde
- são nuvens de algodão doce que jamais voltarão.

Não poderia ser a rosa gratuita que ao partir me empobrecia,
muito menos as férias das gaivotas no céu, e sim, a minha ânsia
em saber que por nada neste mundo seu coração me chamaria.

Não foi aquele Agosto encarecendo-me a graça da existência,
tampouco a saudade da primavera decorando o canteiro da calçada;
tudo não passava de neblina- da minha casa-: poesia e ausência.

Foto: casa de Aleijadinho
Fonte: Google

sábado, 14 de agosto de 2010

Bom de bola por Sergio Martins

Feliz da vida, Joãozinho veio da roça
com o sonho de bater sua própria bola,
crendo que viver no Rio de Janeiro seria fácil como moer mandioca.
Já chegou cheio de prosa,
tentou ficar na moda,
comprou roupas “da hora”,
jogou pelada e tentou “pegar onda”,
mas não conseguiu imitar o carioca,
pois até no sotaque era motivo de chacota.
Todo dia, bem alegre ia de bola cheia para a escola,
porque gostava de merenda e de aprender e nunca tirou uma cola
em teste ou prova e só tirava nota dez pois não faltava uma aula.
Por isso, achou que podia namorar a Maria Paula,
só que a menina mais linda da “quebrada”
não dava bola para absolutamente nada,
nem para os bombons, ou para a rosa perfumada
que aos pulos, ele apanhava de um muro baixo na estrada,
muito menos para os quadros que ele pintava
e os belos desenhos que ele a ofertava
sempre dando às mãos com um sorriso inocente
de quem acreditava que algum presente,
ainda que fosse uma simples bala ou poesia
faria o gosto da menina e do caipira, a alegria.
Mas ele só batia um bolaço no Xote, no Baião e no Xaxado,
no Rap, Funk e Hip-hop, não passava de um embolado,
na rapadura e no baralho até que era bolachudo,
já no video-game ficava bolado e murcho,
em assunto de estudos nunca tinhas bolas foras,
mas no skate e no computador só “bolada nas costas.”
Sua cabeça estava muito embolotada;
visto que não dava uma bola dentro de coisa sofisticada
e cansado de tanta bolachada,
bola perdida, bola queimada,
bola no travessão e bola quadrada,
percebeu que seu jogo mesmo era outra “parada”.
Foi assim que desistiu de tanta “bolação” por nada
e deixou de ser a “bola da vez” da rapaziada
que só tira zero nas provas, nota máxima em “balada”
e que nunca trabalha. Então, de “boleira adoidada”
se mandou. Voltou pro sertão onde é bom de bola.
Agora, longe de ser “mané carambola”,
de bola em bola e do jeitinho que sempre quis,
sua vida vai bolando no seu campinho de terra simples e feliz.
                                  
foto: Google                          

À hora do almoço por Sergio Martins




À hora do almoço, o trabalhador descansa abaixo da meia-sombra fugindo de mais um cáustico dia de verão. Tão logo recostou o alquebrado dorso na parede queimante e viu-se envolvido num olhar forasteiro abaixo da mangueira do seu empregador observando mais que as verdíssimas folhas e as mangas que, presumia, serem deliciosas e que talvez, poderiam cair sobre sua cabeça.

Tentou desviar os olhos da clareira solar e observou mais que sua pequenez de erva diminuta, ou sua triste lida suburbana, ou a fuligem colorida que subia do chão em pequenos redemoinhos, ou os quase imperceptíveis grânulos de água se evaporando feito alívio momentâneo endereçado ao seu poeirento atalho existencial; sentia que tudo aquilo se resumia ao seu próprio íntimo, àquilo do qual ele realmente é constituído: vertigem das emoções, refém de um oásis que só mora na esperança fraquejada, miragem pela sede jamais aquietada de chegar "lá." De modo que aquele breve descansar à sombra tratava-se, sobretudo, de uma controvérsia - o solo permanente de sua alma: escuridão em que se é possível encontrar alívio e calma.

O ingrato patrão lhe acorda aos gritos enquanto ele percebe uma manga madura no chão que possivelmente caíra enquanto divagava. Ignorando o chamado grosseiro e irônico, ele entende a surpresa simples e diária: o seu senhor é quem trabalha muito sem ter a paz que acolhe aos pobres, além de colocar na mesa do desprovido homem o pão e o vinho que o alimenta e o alegra na presença dos seus, os quais, tanto ama e é amado.

O homem se levanta ao estalo de suas costas sentindo o peso da idade e do seu mundo, o desgaste do seu corpo pelos forçosos serviços e da sensação de brevidade existencial. Observa suas mãos calejadas, desenhadas pelas rugas e extravagantes veias, porém, desta vez, suas mãos não estavam mais fadadas ao vazio, pois a manga que segurava lhe surgia como uma resposta ao seu desejo – fruto saboroso e permanente que nem mesmo seu patrão ou o cruel sistema poderiam lhe furtar. E foi assim que ele, apanhado de súbito pelo fruto que caiu feito milagre, seguiu sorrindo como há muito não fazia e sentiu-se tão leve e prodigioso quanto nos tempos de menino em que uma gorjeta ou um beijo de menina bonita e apaixonada faziam a mais eufórica festa em seu humilde mundo.


 foto: Google          

Todo tempo, o mundo todo por Sergio Martins

É tempo todo de crise,
é todo tipo de crime:
beleza que agride,
frieza que incide,
tédio por acaso,
marasmo pelo atraso,
horas que entristecem,
dias que aborrecem,
adolescentes que preocupam,
crianças que abortam,
adultos que aterrorizam
entorpecentes que anestesiam,
filosofias que amortizam,
quedas que quedas principiam,
religiões que não aliviam,
infância furtada dos que sonham...
Tudo quanto é gente tem mente decrescente e mente que nem sente;
é o crente-que-é-crente que não se vê ensandecido e que ensandece,
é o descrente se achando inocente do seu problema,
é o vagabundo anunciando que é vítima do sistema.
Vida repugnante,
velhice amargante,
trabalho escravista – suor e sangue em vão,
amor não vingado – pecado sem perdão.
Doença, pobreza, vergonha, medo, fuga, culpa – mais um no rol;
cadê o sonho americano, a democracia, o socialismo, o lugar ao sol?
Humanidade moderna e consumista,
está consumado o humano humanista,
talvez seja apenas uma sensação de inutilidade
por ter sido afundado pela futilidade.
Indiferença à miséria, preconceito total,
superaquecimento global – viva o pregresso universal!
Radioatividade: primeiro mundo, grande potência,
armas de destruição em massa, planeta em emergência.
Tá na moda – falar de solidariedade
Tá uma zona – homicídio, suicídio na cidade
Tá na moda – assistencialismo, lazer e arte na favela
Tira onda – o famoso que dribla, ganha milhões e não se rebela
Tá na cola – a polícia quer o crioulo do morro e o playboy também
Dá revolta – todo tempo, o mundo todo empaca num só vai-e-vem.
É tempo todo de crise 
É todo tipo de crime
É tudo parte de um todo: é só paixão, ódio e desdém.
É o todo todo indo ao topo: morte que morte não tem.
  
        Foto: Google                                

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Os corvos por Sergio Martins

Os soldados enjaulados em seus tanques de guerra levam corações aquartelados a confrontar com seus semelhantes– companheiros de alienação e morte–; são gaiolas vorazes e enraivecidas carregando os corvos ao delírio do suicídio em frente ao espelho: o corvo quer matar o outro corvo pois aquele é o espelho deste.

Eles não se aceitam, embora tenham algo em comum: o medo. Ambos tem medo de sua senhora– a morte–, porém, não existem armas contra ela, então porque guerreiam? Eles não guerreiam por ela, e sim, para fugirem de sua sedução fatal. Os corvos, ainda que pactuem com a Dama Negra, na verdade, amam a vida; mas contraditoriamente, não podem viver já que estão pactuados com a coragem covarde de temer e adorar a dona de suas noites...

São destruidores destruídos, algozes e vítimas; realmente, eles não sabem quem de fato são, confundidos com anjos e demônios, todavia, todos voam em nome de deus, o deus da morte e da vida, do amor e do ódio. Eterno enigma.

Mas ao fim da guerra bestial, haverá um ninho para cada corvo. Os corvos aprenderão o vôo simples e mágico, e só então, hão de aninharem-se entregues à terra macia que lhes ignora a derrota de serem egoístas e néscios. É ela quem abraçará o corpo de suas vergonhas e os contemplará aflita e misericordiosa abrigando-os ao íntimo quente, profundo e escuro como quem tenta silenciar o universo dos seus dementes desgraçados e cruéis, ocultando a dor dos homicidas noturnos que foram executados e sobretudo, encobrindo o habitat dos vivos dos monumentos apavorantes como uma anunciante do reflorescimento após a delongada erosão.

É ela, somente ela, a mãe terra que foi pisada à marcha colérica e fúnebre dos sem-lei que os acolherá e os plantará para que, noutro tempo, quando então, desarmados de toda batalha absurda e semeados para a nova lei pela qual haverão de amar seus espelhos, possam abraçá-la convictos da evolução, agradecidos e felizes de terem alçado suas asas em ares errantes antes de se redimirem para enfim, repousarem em paz no ninho que os viu plainar na escuridão de suas derrotas.
 
Foto: "Os corvos" de Van Gogh
Fonte: Google
                                           

Divino espaço por Sergio Martins

Em plena terça-feira me encontrei sentado numa mesa cheia de garrafas e copos de bebidas com os amigos do trabalho diante da correria desordenada dos transeuntes que pareciam revirar o shopping em busca de uma organização para os seus subjetivos revirados com os anseios capitalistas. Após minha demissão do serviço, uma pausa para celebrar a comunhão com a santa ceia da liberdade e paz à luz da pura e deliciosa cerveja nacional.

Eu, como sempre movido pela ganância de sugar beleza em tudo o que vejo como tentativa de eternizar o momento qual fotografia que a colega acaba de captar em minha direção, acredito, definitiva e ingenuamente que posso, como fosse um mágico inventor, adiar as perdas e todo o amargo existencial com meu jeito menino de ser; e às vezes nem me dou conta que o nublado celeste apagou a luz sobre mim. No entanto, a única forma de fazer a vida se engrandecer e alongar é parar em meio à bagunça rotineira para captar a beleza em comunhão com os amigos. É aí que sinto as perdas se transformarem em oportunidades de aprender e de ensinar... Até mesmo a demissão do trabalho foi comemorada como uma chance de folgar, de viajar, de me reorganizar e de fazer do ócio algo criativo, como por exemplo, trabalhar em busca daqueles horizontes perdidos dentro de mim que a rotina de trabalho tanto me furtou.

Aqui estou eu, tomando cerveja e batendo papo-furado na ceia profana e feliz; e isto é estranho; pois os meus amigos dizem que a igreja deveria ser o lugar dessa liturgia (ora, sendo teologicamente correto, entendo que a igreja é o lugar do exercício da comunhão), mas não tenho culpa se aprouve a Deus me conceder esta sensação de liberdade e paz em meio ao culto à poesia da qual me faço santuário, ironicamente neste shopping onde observo toda a futilidade e vaidade que não careço ter para ser feliz. Quem diria, logo eu que sou tão crítico e que até bem pouco tempo sentia aversão a shopping, haveria de encontrar nele meu lar: meu divino espaço?!
 
      Foto: meu acervo profissional                                                   

A casa da esquina - Sergio Martins



Na esquina da rua há uma casa se distinguia pela simplicidade e bom humor a brilhar diante das demais. Mas de pouco em pouco sua  beleza foi confinada ao degrado por tudo o que nela havia de frágil e uma nova tendência – a razão fria – envelheceu a jovem decoração da casa. O desgosto minou seus alicerces, provocou infiltrações e rachaduras, a estética detalhadamente arquitetada manchou-se de lodo e pichações, os vitrais embaçados não mostravam mais as expressões góticas e as paisagens rurais; é que a ausência do prazer trocado pela fria razão é pior do que o contrário, porque toda razão longe do prazer é uma fracassada tentativa de suicídio; isto é, a obrigação de ter que conviver com o rompimento da Graça de ser-estar...

As almas penadas que se aliviavam naquela guarida tranquila, agora se deparam com vultos e fantasmas; o lar que recebia os espíritos mais excêntricos sem vitimar-se, não pode mais fazer com que os demônios se tornem dóceis anjinhos. A tecnologia e a cultura material da felicidade alteraram toda a geografia referentes à casa.
Ainda trago na memória os vários cachorrinhos que já passaram pela casa antes que seus donos caíssem no engano de crer que o ser é substituível em prol do ter que deve ser amado; enquanto o ser apenas é mais um objeto do ter, de modo que é descartável.

A arte literária deixou de ser degustada junto com os petiscos e deliciosas bebidas à beira da piscina, o quintal visitado pelas crianças está repleto de folhagens secas e frutos estragados, a tristeza das árvores também se dá pela saudade das crianças que partiram juntamente com os pássaros que nelas se divertiam; o jardim começou a murchar quando foram buscar Deus fora dele; é que os político-religiosos entorpecidos pela ganância do poder – o que eles amam não é a pessoa de Deus, muito menos as atividades político-religiosas, e sim, o poder místico e a autoridade exercida entre os homens – esqueceram que Ele, Deus, fez o jardim para o homem - encontrá-Lo.

O tempo apagou as declarações de carinho residentes dentro de um coraçãozinho desenhado com giz de cera na parede da sala, os gestos afetivos se rebaixaram às acusações e os sorrisos foram trocados pelas trágicas lembranças acendidas nas fúnebres canções... A pequena bicicleta rosa e branca de rodinhas coloridas está enferrujada, as páginas poéticas do diário se amarelaram, a caixinha de música ofertada por alguém apaixonado vê-se quebrada, as baladas românticas dos discos de vinil, as fitas cassetes de musicais infantis, os brinquedos e os vídeos dos dias comemorativos entre família e amigos encontram-se amontoados e esquecidos num quarto onde se acumulam jornais, revistas, álbuns de fotos e cacaréus que documentam um tempo que foi livre e feliz – é o quarto-túmulo da sagrada e sonhadora vida que foi esquecida...

A casa da esquina, outrora simples e feliz que encantava a infância dessa rua, dia após dia está morrendo com a modernidade de uma época que não dispõe tempo para administrar o amor, pois está enfeitiçada pela ganância do ter.

       Foto: Google                                          
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