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sábado, 9 de novembro de 2019

Desnuda - Sergio Martins

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Ouve-se o mundo
Houve um surdo
Houve muda mudança
A mudança que apenas muda
Andança de silêncio absurdo
O silêncio doía turvo
Gritos dançantes pela noite desnuda.

Eu, ator - Sergio Martins

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Nem a calmaria do amor seguro e morno nem a ebulição da paixão.
Respiro agora o ar puro dos meus próprios caminhos livres dos tédios e cansaços de antigos sentimentos.
Passada a ânsia pela chegada da aurora, transito distraído e absorto dos alheios mundospela certeza de que a caminhada é enlace prazeroso.
Já não faço os personagens que, a fim de agradar ao público, como ator cumpria; porquanto, sem a dependência por aplausos ou vãs companhias, passei de expectador de juízo alheio para cumprir meu único e inalterável papel: viver a minha vida. 

Bestalhão - Sergio Martins

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Serena-me sempre uma seresta com cachaça ou garapa,
qualquer sereno em fogueira...
É que, torna-se festa uma boa conversadeira,
Deixando-me flutuante a alma entojada...
Contudo, nem o céu estrelado
ou toda a beleza desse roçado
cura-me da saudade que dói o meu ser por inteiro,
Como se eu fosse um bestalhão deitado sobre um formigueiro.

Terra danada - Sergio Martins

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Regando o caminho com lágrimas, caminhei léguas a pé.
Paguei promessas a Jesus, Maria e José.
Entre rezadeiras e muita trabalheira,
dessa terra provei do bom e da besteira:
das muitas rosas e calmaria de camomilas,
nada que lubrinasse meus dias;
pois me cansara de roçar sem alegria
a terra danada de minha dona Maria.

Por medo -Sergio Martins




Por vezes, matei a vida por medo da morte - admirado,
contemplava a festa nos paços de teus olhos.
Há tempos, por medo da vida assassinei meus lirismos - 
tentando em vão matar a boa morte que brota desse amor.

Os poetas sabem que só se deve beber da vida até o fim da taça, 
e eu que já não sei mais viver pelos mortos 
que me assombravam a felicidade,
rendi-me aos pueris devaneios do prazer:
Sem poesia, toda verdade é distopia;
Sem felicidade, até a morte é vaidade.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Ganha-pão




Zezinho detestava estudar pela manhã, mas às segundas-feiras acordava bem cedo para ir à aula de Educação Física. Essa era a única disciplina que gostava, pois lhe dava a oportunidade de exercer seu talento para o futebol. O pai pediu-lhe que não demorasse para trazer o pão, temendo atrasar-se no trabalho. O garoto, sabedor que na ali na favela sempre faltava merenda na escola, tratou logo de garantir sua primeira refeição do dia. Na saída padaria, um cachorro magrelo e esfomeado abanava a cauda pedindo-lhe o pão. Xô, cachorro!
O cãozinho parou, abaixou a cabeça, mas insistindo conquistar seu bocado diário, retornou; quando Zezinho deu as costas Xô, cachorro!
Os carros da Polícia subiam velozes o morro. Assustado, o moleque encostou-se à parede, desceu devagar, sentou-se no chão; recolhido do mundo horripilante.
Xô, cachorro! Gritou um Policial.
O menino se levantou. Notando a distração do garoto, o vira-lata saltou, conquistando um pão.
Xooooooooooo, pulguento!!! Gritou o PM.
O moleque correu em disparada. O esquelético cãozinho, orgulhoso de vencer mais uma batalha, correu pelo canto da viela exibindo o alimento entre seus dentes como um troféu.
– Xô, cachorrada! Ladravam os cães do Estado.
A roda de vadios espalhou-se em debandada, entre xingamentos e latidos de vira-latas. A matilha se dispersava pelos becos, sumiam pelo morro acima. Os raivosos de raça vinham logo atrás, disparando o terror, num lastro de projéteis e estampidos de guerra.
Já no portão de casa, Zezinho driblava os policiais que rodeavam os corpos estirados pelo chão. Um policial fez a revista. Lançou os pães no chão para conferir se havia alguma droga no saco, os cachorros famintos abocanharam tudo. Com muito esforço, o guri convenceu o policial a deixá-lo passar pelo portão.
No barraco, sem os pães, o pai surrou o garoto, sabido que perderia o seu ganha-pão porque os policiais não o deixariam sair, e outra vez chegaria atrasado no serviço; o que o seu patrão lhe avisara que seria imperdoável.
Hostilizada pelos favelados, a brutalidade canina do poder público se retirava do morro e, alimentada de vingança, exibia os corpos vencidos que pintavam aquele solo barrento de um vívido vermelho-Brasil. Os porta-malas mal cabiam de tanta presa. Certamente, um dia muito proveitoso, o delegado se orgulharia da matéria na TV com tantas apreensões e mortes de vagabundos, o que agradaria seus chefes. À noite, pelas vielas, de pouco em pouco surgiam outros cachorros em busca do ganha-pão de todos os dias.


A Bela de Ju




Bela fazia muito bem o dever de casa, e para aliviar o labor, pintava óleo sobre tela. A casa toda um brio, um brinco - esmeralda o piso, ao esmero de suas mãos. Apequenava-se diante de tudo que ao seu redor crescia: as flores, as casas, os vizinhos... Sobre ela, o mundo em prosperidade debruçava-se pesado, conduzindo-a num aperto esmagador.

Na sala, diante da TV ligada, dormia o marido ébrio, aquela fera insana; roncando agressivamente. Sozinha, na cama, a mulher lembrava do sonho de menina, da ânsia de livrar-se da penúria da roça, de estudar, casar, ter filhos, viajar com a família... Surgira assim o caminhoneiro como seu passaporte gratuito ao paraíso. Mas em pouco tempo, dos serviços cansativos em casa, o suor caía nos seus olhos e escorria pelas feridas como um pagamento escravista e, do macho, sofria seu olfato ao ardente etílico, o medo e a culpa, a tristeza de ver seus quadros rasgados, suas pinturas manchadas, seu corpo espancado, a vergonha por causa das marcas no corpo... 

Na ausência do monstro, irmã Ju, da Ordem das Marianas, fazia companhia e bons carinhos à Bela que, dizia viver apenas por esses dias, nos quais, experimentava as delícias verdadeiras de um casamento, porque sua companheira tinha o amor que enchia de paz e alegria o seu mundo deformado. A chegada do marido compunha o inferno: em loucura, adentrava o bicho ébrio na casa, machucando a porta, caindo pela sala, esbarrando, quebrava cerâmicas e eletrodomésticos. Desde o bar, gritava insultos, empossado por ciúme de irmã Ju, pois odiava os carinhos exacerbados com sua mulher, a sua posição respeitada na sociedade, a imposição feminista que ameaçava seu casamento, o jeito masculino da religiosa - enfeitado num largo habito.
No longo período sem ver irmã Ju, Bela definhava, faltando-lhe os cuidados básicos com seu corpo. Reclamando de sua aparência e do cabelo crespo que crescia naturalmente, o maldito rapou-o completamente, após surrá-la. Envergonhada, Bela passou a usar turbante africano e uma bata que escondia os hematomas. Irmã Ju apaixonou-se tanto pelo estilo que passou a ensiná-la cultura africana e empoderamento feminino. Passaram, então, a sentar com Carolina de Jesus, punham Conceição Evaristo no colo, namoravam Angela Davis, ouviam Elza Soares, beijavam Ella Fitzgerald, acariciam a Jovelina Pérola Negra...  

Odiando a moda de africanidade, o marido sovou-a com incontida violência. Após o surramento, o bruto sempre dormia bem, mas na ocasião, um pesadelo atordoara seu espírito: o fogo o consumia, e ele sequer podia fugir, preso ao chão pelo corpo pesado de álcool. Sob o terror do sonho, resolveu fazer plano de saúde e seguro de vida. Passou a ser devoto de Santo Expedido.

Tensa, a mulher fumava muito tabaco. Olhava de soslaio para a imagem de Santo Expedito, com quem reclamava sua impaciência pela demora do milagre pedido,muxoxava e rangia os dentes,ameaçando fazer uma loucura.

Às 18h, acendeu a vela para o santo e foi ao mercado. Pelo caminho de volta à casa, as sirenes soavam, de longe via a fumaça que subia alto... O incêndio levara a pequenez e o grande peso do seu mundo: o bruto fora fritado, sem ao menos sair do sofá, de tamanha embriaguez; sem notar a vela acendida para o seu Santo protetor, que lambera de fogo a cortina embebida de cachaça por Bela. 

Irmã Ju abigrou Bela, remediou suas feridas, relaxou seu corpo. Aliviada das dores, Bela descobrira a curtir bem o seguro de vida e sua aposentadoria, e aprendera rapidamente a sorrir - sob o gozo do amor (vingado). 

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