Bela fazia muito bem o dever de
casa, e para aliviar o labor, pintava óleo sobre tela. A casa toda
um brio, um brinco - esmeralda o piso, ao esmero de suas mãos.
Apequenava-se diante de tudo que ao seu redor crescia: as flores, as
casas, os vizinhos... Sobre ela, o mundo em prosperidade debruçava-se
pesado, conduzindo-a num aperto esmagador.
Na sala, diante da TV
ligada, dormia o marido ébrio, aquela fera insana; roncando
agressivamente. Sozinha, na cama, a mulher lembrava do sonho de
menina, da ânsia de livrar-se da penúria da roça, de estudar,
casar, ter filhos, viajar com a família... Surgira assim o
caminhoneiro como seu passaporte gratuito ao paraíso. Mas em pouco
tempo, dos serviços cansativos em casa, o suor caía nos seus olhos
e escorria pelas feridas como um pagamento escravista e, do macho,
sofria seu olfato ao ardente etílico, o medo e a culpa, a tristeza
de ver seus quadros rasgados, suas pinturas
manchadas, seu corpo espancado, a vergonha por causa das marcas no
corpo...
Na
ausência do monstro, irmã Ju, da Ordem das Marianas, fazia
companhia e bons carinhos à Bela que, dizia viver apenas por esses
dias, nos quais, experimentava as delícias verdadeiras de um
casamento, porque sua companheira tinha o amor que enchia de paz e
alegria o seu mundo deformado. A chegada do marido compunha
o inferno: em loucura, adentrava o bicho ébrio na casa, machucando a
porta, caindo pela sala, esbarrando, quebrava cerâmicas e
eletrodomésticos. Desde o bar, gritava insultos, empossado por ciúme
de irmã Ju, pois odiava os carinhos exacerbados com sua mulher, a
sua posição respeitada na sociedade, a imposição feminista que
ameaçava seu casamento, o jeito masculino da religiosa - enfeitado
num largo habito.
No longo período sem ver irmã
Ju, Bela definhava, faltando-lhe os cuidados básicos com seu corpo.
Reclamando
de sua aparência e do cabelo crespo que crescia naturalmente, o
maldito rapou-o completamente, após surrá-la. Envergonhada, Bela
passou a usar turbante africano e uma bata que escondia os hematomas.
Irmã Ju apaixonou-se tanto pelo estilo que passou a ensiná-la
cultura africana e empoderamento feminino. Passaram, então, a sentar
com Carolina de Jesus, punham Conceição Evaristo no colo, namoravam
Angela Davis, ouviam Elza Soares, beijavam Ella Fitzgerald, acariciam
a Jovelina Pérola Negra...
Odiando a moda de africanidade, o
marido sovou-a com incontida violência. Após
o surramento, o bruto sempre dormia bem, mas na ocasião, um pesadelo
atordoara seu espírito: o fogo o consumia, e ele sequer podia fugir,
preso ao chão pelo corpo pesado de álcool. Sob o terror do sonho,
resolveu fazer plano de saúde e seguro de vida. Passou a ser devoto
de Santo Expedido.
Tensa, a mulher fumava muito
tabaco. Olhava de soslaio para a imagem de Santo Expedito, com quem
reclamava sua impaciência pela demora do milagre pedido,muxoxava e
rangia os dentes,ameaçando fazer uma loucura.
Às 18h, acendeu a vela
para o santo e foi ao mercado. Pelo caminho de volta à casa, as
sirenes soavam, de longe via a fumaça que subia alto... O incêndio
levara a pequenez e o grande peso do seu mundo: o bruto fora fritado,
sem ao menos sair do sofá, de tamanha embriaguez; sem notar a
vela acendida para o seu Santo protetor, que lambera de fogo a cortina
embebida de cachaça por Bela.
Irmã Ju abigrou Bela, remediou suas feridas, relaxou seu corpo. Aliviada das dores, Bela descobrira a curtir bem o seguro de vida e sua aposentadoria, e aprendera rapidamente a sorrir - sob o gozo do amor (vingado).