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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A cena muda - parte 1 - por Sergio Martins




A segunda-feira fora arremessada à fervura típica do verão carioca. Dentro do ônibus, a volta do trabalho pra casa se dava ao luxo de uma ambiência relaxante e calma sob as cores metafóricas e metamórficas do crepúsculo vespertino.

O primeiro dia útil da semana com seus muitos encargos, geralmente, não se assoma de eventos dos quais possamos classificar como significativos. E por ser assim, traduzia-se em nada além de mais uma data onde a rotina e o cansaço são interrompidos pela euforia dos amigos comemorando mais um título do Botafogo que gloriosamente punha-se em destaque nas capas de revistas e jornais pela conquista de mais uma taça Guanabara; infelizmente, sobre o Flamengo, que em minha absurda opinião de torcedor é o melhor time do mundo.

Havia também outra conspiração em enfeitar aquela segunda-feira de um adorno especial, é que ao longo das avenidas via-se um intemporal florescimento de ipês amarelos que embora inibidos, revelassem apenas suas copas desprovidas da fartura primaveril conseguiam despertar em mim uma irradiação de simplicidade e extraordinário e de divindade e humanidade através de suas esplêndidas e florescentes luzes. Vendo aqueles seres tão vivos, monumentais e dançantes em meio à balburdia costumeira dos transeuntes, compreendi que sendo lógico, isto é, um pouco mais racional e naturalista, me cabia bem ser ateu, mas em presença dos ipês sinto mais fortemente o feiticeiro e o poeta que habitam meu íntimo. São eles, o feiticeiro e o poeta, que mergulham meu olhar em direção à vida e ao mundo em luzes e cores encantadas, de maneira que sou levado a ver “estórias” por trás das histórias e imagens segredadas nas coisas e pessoas que mais parecem falsas vitrines tentando driblar minha visão e, portanto, estou assegurado a caminhar na contramão do ceticismo. O fato é que sou todo avesso mesmo e contra isto não há lei nem freios, pois a razão de eu ter fé está para além de minha própria compreensão e o lirismo todo dessa crença que vez por outra se ofusca por conta das marés violentas, acaba por desembarcar no cais de um pequeno detalhe do dia-a-dia, como por exemplo, um capricho divino no qual meus olhos se embriagaram quando um repentino e ligeiro engarrafamento de certa avenida repôs fôlego ao meu corriqueiro vazio existencial.

Pois bem, era uma segunda-feira na calmaria relaxante do tremulante assento de ônibus onde eu jamais iria supor ser meu divã até que, breve e marcante como um relâmpago que deixa seus rastros de destruição, ocorreu-me o que há de permanecer em mim semelhante aos amores lendários e trágicos e as grandes e históricas felicidades indisponíveis ao esquecimento.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Soneto à viola acidentada por Sergio Martins





Desde fevereiro, corpo saudável. Alma inebriada.
De incansável e grosseiro dedilhar do destino,
suas cordas quebraram. Realidade em desafino.
Suas notas sorridentes em elegias perpetuada.

No enterro do carnaval, voltam-se ao caminho:
Baião, Forró e alegrias de antiga Bossa Nova.
Mas na esperança sob a desgraça em voga,
a viola acidentada içará seu último Chorinho.

Entre saxofones luxuosos, máscaras festivas,
eufóricas percussões e flautas orgulhosas,
sua imagem apagada que brilhava nas avenidas.

Suas fantasias em desencanto, emudecem sem as rimas.
Na beleza da folia que não transluz felicidade,
a viola acidentada mora na quarta-feira de cinzas.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Taciturna - por Sergio Martins

                          
                   

Durante a manhã há sombras melódicas em teus olhos,

nos dias nublados você fica tão inebriante e sedutora 

quanto a morte que degustamos num Réquiem de Fauré.

Quão bela é sua aparição nas fúnebres ruas:

o vestido preto, a sombria maquiagem desfeita pela chuva –

fotografia do mundo falecido– rara flor da noite!

 

Não quero o colorido passado, o céu ensolarado nos irrita,

e já desconhecemos o dia; pois só acordamos à noite

para dançarmos o lunar madrigal

ou a ópera carnavalesca das assombrações. 

Almejo a rouquidão, o fumo e o uísque de tua boca:

ao doce do teu batom preto, meu apetite vampiresco.

 

Foi numa madrugada que conheci teus nefastos carinhos,

uma ventania gélida precedendo a brisa quente,

que me arrepiou todo o ser,

e me soprou aos ouvidos o meu medo mais profundo, 

antes do temporal despedaçar toda a vida que eu conhecia:

o medo de morrer, na verdade era apenas a frustração de

não realizar o desejo de viver tudo o que eu sonhei.

Em meio às brumas você apareceu tão tenebrosa

e irresistível como as catedrais góticas, e me tocou:

acordes sonâmbulos e desesperados do meu ser!

 

Você necessita do meu sangue e da minha carne, 

eu tenho muita sede de suas lágrimas e fome de sua tristeza,

pois minha felicidade é também é a sua:

ter o nosso amor – que é de morte.

 

Minha amada taciturna, seremos só eu e você nesta sinfonia fantasmagórica:

assistir o teatro dos horrores, plantar rosas murchas no jardim doente,

inebriar à lira sinistra do inverno...

Nosso mundo será eternamente este solitário e belo cemitério,

ao som de suas canções melancólicas ao violino.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Vermelho - por Sergio Martins






 No feitiço dos meus olhos mora uma sedução que não se desprende.

Tudo o que vejo nesse espelho é a partir de você.

Meu olhar te segue.

Por que antes mesmo que minhas pálpebras se abram ao amanhecer, no teatro do meu desejo inconsciente, desce a cortina onde me deleito em sua luz cor de sangue e enigmática?

Antes de qualquer imagem, minha retina enxerga primeiramente a beleza de sua meia-luz escarlate onde há uma força, um sobressalto do tempo-espaço, tal qual, fogo repousado e breve no céu do despertar matutino - onde mora a lembrança dos sabores de frutas vermelhas.

É de Marte e de morte esta vermelhidão de entardecer que me sorve numa estranha poética: caminhar a esmo na escuridão, ver tua sombrar amigar-se aos meus passos, estar ao seu lado olhando as estrelas, ouvir o agitado mergulho de Fevereiro em nossa noite lírica; perder-me de vista no encanto do teu rubro mar.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Soneto do Pai João - por Sergio Martins





Há tempos, eu sonho com o Cacique de Ramos
e com o pagode do Zeca em Xerém,
no entanto, sem ter nenhum Vintém,
ficarei com a mesma fantasia de todos os anos.

Estou aflito para ir ao Scala, à Cidade do Samba,
ao Sambódromo, ao baile do Sovaco do Cristo
e ao Cordão do Bola Preta, mas só pela TV assisto
as festanças e realizo meu sonho de ser um bamba.

Fora as micaretas de Salvador, a boemia de Copacabana,
o Frevo do Recife e o Maracatu rural, sou Pierrot, pirata
ou gorila plastificado; num tédio de ter o bolso sem grana.

Quero os desfiles de Sampa, sentir a Mangueira - a Tradição,
o carnaval de máscaras (dos que se revelam) e da Amazônia,
pois só conheço os coretos onde sou apenas mais um Pai João.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A doceira - por Sergio Martins







Quando é noite de sexta-feira

ela desce pra quadra da Mangueira.

Faça chuva ou sol pra ela não tem saleira,

e com água na boca também vou com a baladeira.

No gingado do seu pandeiro

dança meu coração violeiro.

Tamborim de mulata-docinho,

chocalho, pé-de-moleque, cavaquinho,

brigadeiro, chocolate com cereja... linda-boleira

fez muito “doce” sem “perder a estribeira,”

me deu um beijinho com açúcar de confeiteira,

cajuzinho, suspiro de morena sambadeira;

atrás do meu sonho de creme, descerei de novo a ladeira

pois um dia, com minha cocada preta morarei

e bem-casado (ela será meu meu melhor doce que) comerei.


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