Próximo à Igreja Verdadeira de Jesus Cristo, apareceu Zé da Cana, um alcoólatra que mendigava pelas ruas da Tijuca. Ele gostava de ficar à porta do templo pedindo moedas e restos quaisquer ao pipoqueiro; punha-se até mesmo a ouvir o sermão:
- Jesus liberta da cachaça, do vício, da miséria!
- Amém! Confirmava o pedinte.
A Tijuca sempre foi um tipo de Zona Sul deslocada da praia e não se situava bem na chamada Zona Norte, tamanha era sua importância histórica e representatividade dos bons costumes, portanto, no bairro de família, o bêbado não podia transitar seus maus hábitos sociais; por isso, vez por outra, a fim de que os fiéis não fossem incomodados pelo endemoniado, ao término do culto, os obreiros da igreja o expulsavam. O pastor, não querendo sujeira na porta de sua igreja, acionava a polícia.
Nada adiantava: mesmo cheio de hematomas causados pela educação disciplinar da polícia, todo domingo Zé da Cana aparecia para ouvir o sermão do pastor enquanto pedia esmola e comia restos de pipocas. Até vir novamente a expulsão do demônio pelos obreiros e a ordem promovida pela segurança pública.
Na manhã da Sexta-Feira da Paixão de Cristo, Zé da Cana já estava bêbado. Ao longe, vinha tropeçando pela Via-Crúcis em direção ao santuário, o seu Calvário cotidiano. Vestia um short jeans curto, muito sujo e fedorento. O sol carrasco chicoteava suas costas foscas, a camada dura de sujeira sobre a pele negra - feito um mármore cintilante de poeira. Os cabelos longos e imundos colavam-se, formando faixas acinzentadas, como uns farrapos de tapete.
Levava sobre as costas cansadas e curvadas grandes sacolas de badulaques, dentro das quais, várias outras bolsas, numa bagunça de maltrapilhos. Uma bolsa rasgava e os trapos se espalhavam pelo chão.
Os homens de bem o xingavam, os moleques cuspiam e lançavam pedras, as senhoras o excomungavam, as crianças choravam, corriam assustadas da aberração. Um soldado tentou conter a situação e deu umas pancadas no bebum que impedia o fluxo de pessoas. O cachaceiro desabou em cima do paralelepípedo. O sangue descia pela cabeça rachada, abriram as feridas do corpo purulento.
À tontura de embriaguez, girava-se o céu. Achou uma coroa de ramos no lixo e a pôs na cabeça para amenizar o ardor solar. Os pés inchados sob os joelhos inflamados cambaleavam, mas prosseguiam. O objeto inútil e podre incendiava em febre, no entanto, seguia, calado, como uma ovelha rumo ao matadouro.
Buscando sombra, sentou-se abaixo de uma marquise, debruçado à cruz pesada de bolsas. A fome mordia o estômago, fraquejando sua pressão arterial. Avistou uma lixeira. Disputou com um cachorro alguns pães endurecidos. Uma enorme mosca azul barulhava dentro do saco plástico da mortadela. Os transeuntes deram-lhe uma surra antes que a polícia chegasse para acalmar a situação. Os guardas o esbofetearam e chicotearam-no com um cinto de couro achado entre as coisas do molambo.
A pele aguardente queimava, tremia ao efeito da respiração ansiosa. Ensanguentado e às apalpadelas, mergulhou no chafariz da praça. Após o último gole de cachaça, sentiu sede. Pediu água no bar. O dono do comércio, irritado, porque aquela figura tenebrosa espantava os clientes, deu-lhe um copo de vinagre.
Por fim, chegou à calçada da igreja.
A noite descansou. O sábado amanheceu e despertou a atenção da nobre vizinhança: Zé da Cana permanecia deitado e assim ficou até a noite. A criatura desprezível consistia num impasse: haveria culto pela manhã, por isso deveria sair dali.
Da urina, o cheiro de álcool; a amônia, do suor. O resto de gente era um bafo etílico que mal cheirava toda a rua, um odor agressivo do inferno que perturbava a sagrada comunhão dos cristãos.
A pedido do pastor veio a polícia, trazendo a ordem. O miserável recebeu muitas cassetadas, contudo, permaneceu na mesma posição: deitado com as mãos abertas e feridas, os pés juntos, formando um símbolo corporal de cruz. A coroa de ramos presa à cabeça.
O policial anunciou o laudo: estava morto.
Aproximou-se um piedoso que dava alimentos e esmolas ao mendigo:
- Eu me sentia purificado com seus sermões, gostava quando ele me dizia “Bem-aventurados os que têm fome e sede justiça...”
Os amigos em situação de rua e fiéis devotos do finado relatavam o que sentiam:
- “Ele levou sobre si nossas dores, nossas ofensas...” Ele nos salvava todos os dias com palavras de fé e esperança. Todo dia era santo, ele nos juntava para a Santa Ceia em que bebíamos cachaça e comíamos os pães trazidos por ele. Os Policiais o perseguiam e maltratavam para não ter o esforço de surrar a todos nós, miseráveis pedintes; agora estamos todos com medo e desamparados, pois o Zé da Cana era o homem que sofria por nós.
Discorrendo em suntuosa oratória, um comunista intelectual, eloquente e engajado nos Direitos Humanos, deu bom testemunho do santo:
- Zé da Cana é a metonímia desta sociedade decadente! Nele eu vejo uma espécie de bode expiatório, o que parecia emitir, através de sua ébria e louca existência, o atestado de sanidade tijucana. O corcunda não levava apenas bolsas de maltrapilhos, mas sobretudo a sua cruz: o peso de um mundo tijuco, as mazelas de um bairro abjeto. De modo que sua vida e morte representam a lavagem dessa gente de alma tijucal, já que sua maldição transformava esse bairro em bênção; mas agora, sem a luz do santo que vivia em situação de rua, o bairro retorna à Idade das Trevas, a sua mais pútrida natureza de tijuco.
Misturado ao chão, o corpo que circulava invisível e cambaleante pelas ruas cínicas da Tijuca, finalmente, estava visível e vencido. Aquele estilhaçado e indigente, embora conhecido pelos botequins, não possuía sequer identidade – dizia-se dele: é apenas um negro favelado que logo sairá do chão para a terra dos defuntos. Ele, porém, demorou a sair dali. O corpo insistia permanecer colado ao chão.
Ao raiar do dia, a calçada estava limpa para receber os fiéis, e o pastor poderia iniciar o culto em paz. A Tijuca não teria mais o seu principal Judas para o malho, por outro lado, de uma vez por todas, o miserável deixaria de atormentar as ruas do respeitável bairro.
Na Igreja Verdadeira de Jesus Cristo haveria a grande festa da ressurreição.