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domingo, 30 de dezembro de 2018

Antônio, o Conselheiro


No Porto da Barra, em Salvador, misturado aos entulhos e todo tipo de gente em drogadição, perambulava Antônio; mais conhecido como Conselheiro. Ainda jovem, fora poliglota, autodidata e exímio literato; acumulando nas principais universidades da Bahia várias obras sobre Gramática,  Política, Filosofia, Literaturas, Linguística e afins. No dia que o Governo socialista foi golpeado pelo mais recente Liberalismo da extrema Direita, ele que vivia sob o molde socialista, sofreu um choque mental, um colapso de memória; de modo que as informações de seu cérebro embaralharam-se em lapsos de repentinos esquecimentos, e logo a família resolveu interná-lo num hospício. Ali Antônio recebeu o apelido de Conselheiro, dado ao proselitismo pelo qual reunia os loucos para que ouvissem seus discursos. Abaixo de uma árvore ou sentado no chão com seus discípulos ao seu redor, ele panfletava suas ideias revolucionárias, denominando-se contrarrevolucionário elitista. A todo momento sua oratória era interrompida porque esquecia de algum nome ou fato, daí pedia aos seus alunos que providenciassem o livro por ele citado.

Ao fugir do internato psiquiátrico rejeitou os familiares que se debandaram pela sedução do novo Governo, indo morar num barco abandonado no Porto da Barra. Rapidamente arregimentou muitos seguidores. O intelectual era visto por toda a Barra com um bando de sem-teto que levava muitos livros em sacolas, incendiando a cidade com ideologias antigovernistas. Se visse um parente na rua, xingava-o: Policarpo Quaresma! Com os pés na espuma do mar lamentava: “De repente, não mais que de repente...” Quando irritado com a perda de alguma ideia, resmungava: minha mente só tem cinco minutos, e logo pedia Cinco Minutos do José Alencar. Depois, consolava a si mesmo: “A memória é uma ilha de edição – um qualquer passante diz, em um estilo nonchalant..."

O barco, embora não saísse do Porto, era o lugar de suas divagações, naquele apertado e avariado lar, ele se acomoda entre Marx e Kierkegaard, espremido entre suas teses de doutorado e poetas ingleses, via as estrelas de Bilac, amassava Dostoiévskie e Balzac, na escuridão, lia originais de Allan Poe ou Wilde à luz de velas, dormia sobre Machado, debruçado ao Chateaubriand ou abraçado por Émile Zola, comia seus restos com Fernão de Oliveira e Mattoso, bebia cachaça com Lima Barreto e os Andrade, às vezes, rezava com o Boca do inferno. Ao amanhecer, defronte ao mar, estava metido à Adélia, Cecília ou Clarice, sentindo-se um um novo ser, movido por sinestesia, epifania e à metafísica da poética, e entusiasmado com o som do mar e as andorinhas, surtava: Imagética! Fluxo de consciência! Que realismo fantástico! Ao pôr do sol declamava Borges: “Vamos andando solidamente e de repente vemos um pôr-do-sol; e estamos perdidos de novo...” Nesses momentos, trazia sempre à mão um livro de Neruda, reunia os moribundos e gritava: “Nós perdemos também este crepúsculo. Ninguém nos viu à tarde com as mãos unidas enquanto a noite azul caía sobre o mundo. E para não deixar seus amigos tristes, pedia que nunca esquecessem: Dois e Dois são Quatro, como afirmou o cálculo do Ferreira Gullar.

Se encontrasse, por exemplo, um vira-lata ou um policial, gritava: Cachorra Baleiaaaaaaaaaaaaa! E xingava os soldados: animalização do homem, humanização do animal!! E logo a mente travava após pedir aos seus seguidores algum livro: zoomorfia! Antropomorfia! Essas vidas secas em Severina vida e morte!!! Em deboche, pedia cigarro aos transeuntes: Dê-me um cigarro/ Diz a gramática/ Do professor e do aluno... Ao ler tragédias num jornal, encolerizava-se: Hiper-realismo, verossimilhança ou inverossimilhança? Essa distopia capitalista é o solo minado de bombas que o Governo nos obriga  transitar... E logo pedia aos seus adeptos desde a Utopia, de Morus, Maquiavel, A República,  de Platão até qualquer um livro de Paulo Freire que suavizasse os oprimidos. Esse jornal está cheio de variação linguística e corrupção da Gramática Normativa! Em seguida, aconselhava o jornaleiro como fazer perfeitas amarrações de pronomes com verbos, dos termos essenciais com os acessórios, dos processos morfológicos... mas a aula durava pouco porque ele acabava esquecendo do que estava falando.

Gostava de catar periódicos pelos lixos, e sempre que achava uma revista ou uma propaganda qualquer, perguntava aos seus discípulos: tipo textual, gênero literário/estilo de época ou gênero textual? É Literatura de informação? E começava o discurso de Quinhentismo.
Diante de um coqueiro improvisava: “Minha terra tem coqueiro onde canta o pardal...

Até que começou a praticar sua anarquia, invadindo as ruas com seu bando, distribuindo poemas antigovernistas, pichando os muros: Seja marginal, seja herói. A polícia surgia furiosa. Escudado pelo batalhão de esmoleiro, o Conselheiro lançava pedras, berrava contra os militares: sou Peri, e Ceci é a pátria pela qual eu dou minha vida! “Minha Pátria é minha língua”. Para intimidar os rebeldes, a PM lançava bombas de gás, tiros de borracha, abandonava pelas praças os corpos de comunistas mortos após a tortura. Velho Antônio cobria os corpos dos comunistas com lençóis, pedia ao seu grupoUma vela para Dario, por favor! E dava-se aos prantos: Um corpo que cai!!! “Quem pagará o enterro e as flores. Se eu me morrer de amores?”

Era noite de Natal. Reunido com seus fiéis em volta do seu barco, bebia cachaça e comia restos de lanchonetes enquanto lia o Natal na barca. Vendo ao longe a polícia que se aproximava para a limpeza do Porto, o Conselheiro pediu que ninguém o abandonasse e enfrentasse com dignidade os anjos da morte: chegou a nossa hora. É a Hora da Estrela, somos todos Macunaíma! Transformaremo-nos numa Ursa Maior! Lembrou-se de Vinícius de Moraes: “Outros que conte passo por passo: Eu morro ontem/Nasço amanhã/ Ando onde há espaço: — Meu tempo é quando”.
Os tiros certeiros não deixariam nenhum mendigo vivo.

Agonizando, Antônio se esforçava para entrar no seu barco: 
É o Auto da Barca, meu Auto da Compadecida! Esperei-te ansioso por tanto tempo, minha bela morte, minha Belle Époque... Beija-me, ó fria e doce dama, dona de meu ser ultrarromântico... Arrastava ainda o derradeiro poema de Pessoa intitulado Conselho: “Cerca de grandes muros quem te sonhas/ Depois, onde é visível o jardim/ Através do portão de grade dada/ Põe quantas flores são as mais risonhas...” Até que esqueceu do restante do poema, e finalmente, pode ser esquecido...

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