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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

"Mi, mi, mi" ou poeira suja e purpurinada - Sergio Martins



1

Numa entrevista de emprego, da recepção eu não passaria,

ao passo que um elegante loiro, mal se apresentaria

e já entraria à sala do chefe onde o seu currículo entregaria.

2

Desisti de entrar à loja chique receoso da cena que se repetiria:

nenhum vendedor, por bem, a mim atenderia,

algum cliente se incomodaria,

o segurança, por fim, engrossaria...

3

Na calçada, dentro de um carro a luz se apagaria:

o engravatado, pálido, camuflaria a grana e se abrigaria,

antes de acelerar - por pouco, atropelado eu seria.

4

O policial não gostou da cena, acudiu-me em delicada serventia,

cuidou de fazer a revista minuciosa com fortes carícias e mestria,

ocupando-se com o bem-estar de uma cédula que pouco valia.

5

Agarrado a bolsa de grife, o ruivo de pele alva muito se tremia

(talvez fosse o susto pelo meu tamanho), por Deus, desmaiaria!?

Olhando-me atônito e amedrontado, pensei: um infarto sofreria!

6

No colo da mãe branca, a criança (de mim) se escondia

e chorava, ao lado do pai, um russo que a protegia

com olhar zangado de muita valentia,

como se eu fosse o Boi da Cara Preta que não poderia

andar pela Zona Branca da cidade - que jamais escureceria.

7

Em casa, diante do espelho, querendo chorar eu sorria,

notando meu cabelo microfonado que subia,

minha pele invisível (o sol plebeu luzia)

e ofuscada de muitas eras de açoites, teria,

finalmente, o descanso que merecia?

Restaria a mim, exorcizar da alma a branqueria,

aquela poeira suja e purpurinada que eu lavaria.

8

Neg’Amora, mesmo cansada da lida (é sempre mágica poesia),

queria dançar, embevecida de uma louca euforia.

O deboche de Deus para os maus, não seria,

dos pobres, toda esta amorosa alegria?

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