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domingo, 24 de outubro de 2010

Madrigal da hora de partir por Sergio Martins


Na negra e sedutora camisola de cetim, eram trêmulas suas mãos, que chegavam frias ao meu peito quente, ao tempo em que eu aquecia teu ventre, dedilhando-o para aliviar as cólicas; macio e pálido, seu corpo esticava-se à frente: meu lençol entregue à cama. Nesses instantes, à brisa vagarosa no inverno, o ar grotesco de sua face se abrandava, embora seu olhar noturno e desconfiado me trouxesse o pesar do adeus até mesmo no momento da chegada e dos reencontros comemorativos.

E assim, por milênios, vagando por toda a Terra, tivemos muitos enlaces, desatamentos e desatinos; contudo, ainda questiono: conhecestes, de fato, o amor enquanto verdade absoluta? Por quem morrerias ou eternamente viverias (feliz)?

Livre do gozo doloroso e da ausência de tranquilidade, há alguma paixão ardente em que eu possa encontrar em ti? De onde brotam tamanha secura em teus grandes lábios encharcados com o prazer que neles ponho? Que custo amargo é esse advindo da dor de teu fugaz prazer? Onde ocultas as chaves do teu acorrentado e magro túmulo em que me aprisiono nas trevas de uma incessante e falaz esperança?

De que adianta toda a sua solidão, se ela é apenas uma maneira cruel e estúpida de se vingar – talvez, de seus próprios sentimentos e verdades? Ao silêncio das mortiças noites sob a escuridão gélida de nosso sarcófago, sempre notei quanta dança eufórica e morta há em teus quadris, quão profundos abismos e lastimosos são teus seios.

Durante muito tempo matei a vida por medo da morte, enquanto percorrias festeira no palácio de suas admiráveis composições; e, por medo da vida, tentei matar a morte que vinha deste amor, ao passo em que sorrias, contemplando-me, como se eu fosse um pássaro voando em direção à inevitável desgraça. Da bela e amaldiçoada luz de seu olhar provinha a eterna e amarga despedida, a cruel hora de partir eram os seus passos, pelos quais eu fazia o meu caminho.

Todavia, embora me fascinem os crisântemos mortuários de teu jardim– que servem de adorno ao túmulo da morte que bebi em sua deliciosa boca–, sou convicto de ter bebido até a última tristeza de teus olhos endereçados a mim, mas agora, depois de conhecer a rara flor do dia, perdi-me da vida em luto. Hoje, tão devoto da luz, mesmo morto de amor, já não posso mais viver pelos mortos.

 

 


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