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domingo, 17 de agosto de 2014

O amor que não (se) prende - Sergio Martins




Vinícius desejou possuir Sofia; a mulher dos seus sonhos. Ela materializou-se e resolveu encontrar-se com ele. A deusa do seu amor tinha cabelos ao vento em cor vermelho crepuscular semelhante às copas das amendoeiras na primavera; e quando o sol penteava-o em raios prateados, um mar de bronze convida-o a mergulhar... Sua pele era lã fina, alva manhã, nuvem de algodão afetuoso. Havia o doce caju nos seus lábios e através dos seus olhos feito duas jabuticabas pequenas e brilhantes, Vinícius permitia conquistar-se todos os dias. Do sorriso, suas melhores canções, das palavras, lembranças que alimentava-o de alegria e de sua mente excepcional, o abrigo materno. O corpo leve da menina lhe flutuava aconchegante; nele, o menino fez sua morada, eterno lar-doce-lar onde embebedou-se de vinho branco e degustou de todo o seu pomar. 

Na conclusão do seu “Madrigal Melancólico”, Manuel Bandeira confessa: "o que eu adoro em ti, é a vida". O poeta entendia que sua vida traduzia-se naquilo que fazia e recebia do ser amado. Para os românticos, o significado da vida é esse Eros. Se estamos embevecidos de Eros, a vida que temos e fazemos na pessoa amada é o que realmente dá sentido à nossa existência e sem tal propósito consumado, o fim de Romeu e Julieta, talvez seja a melhor solução. 
Sofia, semelhante aos deuses, tinha "olhos de adeus". 
Aos braços da divindade do amor, Vinícius estava seguro e feliz; porém, de maneira alguma conseguiria vencer a sensação de ver, a todo instante, a fuga do seu desejo alcançado no olhar de sua amada. Amar também é mitificar o outro - a necessidade humana de criar e prostrar-se aos os deuses. Sofia estava e não se encontrava, como uma alma sem corpo, tocava e não sentia-se tocada, mas Vinícius tinha olhos do realismo fantástico de todo devoto ao amor e por isso, a tocava como um exímio músico e a ele, ela era sempre visível mesmo sem permitir que seu íntimo fosse visto. É que os deuses habitam lugares misteriosos, de modo que mesmo em sua companhia, Vinícius sentia muita saudade. E penso que o amor também seja isto: saudade que nunca se despede. Eros é sonho que se realiza na saudade permanente em nós. Daí, a dependência de estar em companhia do ser amado. No olhar negro e aceso de Sofia, o amado saboreava o estranho da saudade de sua alma em seu próprio corpo: o seu eu-pessoal perdidamente longe de si; feito um pequenino e fúnebre cais diante das ondas onipotentes de seu festivo alto-mar.
Vinícius era feliz mesmo tendo o adeus dos olhos de Sofia que lhe provocavam saudade. Ele estava satisfeito com a vida que Sofia lhe proporcionava e deste modo, o que era imperfeição, tornou-se objeto de culto. Imperfeição é o que temos do espelho quando queremos enxergar. Imperfeito é não entender que a imperfeição alheia aponta para as minhas imperfeições. Imperfeição é arte: um estímulo à continuação, ao conserto, à procriação das habilidades do artista – escuridão que ilumina sua inspiração. Através do que é imperfeito, deixamos de ser concorrentes para sermos cooperativos, o outro encontra espaço em nós para aperfeiçoar-se e na imperfeição do outro, nos consertamos e assim, nos completamos.
A deusa amava, porém necessitava seguir viagem. Sofia viajou, qual amor que é mar fugidio – saudade permanente em nós. Eros, feito tudo o que é enigmático e divino, é um viajante alado, é oceano em que se mergulha, afoga e encontra-se nova e bela vida todos os dias. Nele, conhecemos a sensação de estarmos indo para o nunca mais. A fome de comungar amor aumenta e o mesmo amor que azarou o jogo, agora vira a mesa favorecendo mais um final feliz à novela existencial. Com isso, nos enchemos de prazer. Que felicidade, vencemos de quem sempre fomos vencidos! E tão logo, nos deparamos com o crepúsculo vespertino, as longas e glaciais  noites de inverno... É a saudade batendo à porta – sentimento estranho e belo. Mas se Eros é sonho que se realiza em saudade permanente dentro de nós, é para que criemos uma dependência de estarmos sempre sonhando com ele. Amor é ida e vinda, ter e não possuir, dar e receber, perder para ganhar...
Evento luminoso é este: após a temporada de guerra o valente volta ao lar cheio de histórias, o marido retorna da viagem demorada para a alegria de sua família... É bom velejarmos por mares longínquos, distantes da solidão – solidão não é saudade, nem estar sozinho, é apenas uma sensação ilusória; sentir-se sozinho –, seguros, de bem com nosso coração, livres, amantes de toda a gratuidade da vida. Até chegar o momento em que a alma grita alto pelo ser desejado... É hora do reencontro! Perder para ganhar. Olhos nos olhos, paraíso reconquistado: arrebatamento da vida real, encanto de Eros. E aquilo que significava imperfeição nos conceitos se torna perfeição nos sentimentos: a graça dos sorrisos agradecidos, os votos de confiança, as juras, o pedido de perdão, as alianças, os dedos de nobre seda  amaciando o corpo tenso, a alegria de ser útil, a magia de seduzir e ser seduzido, o perfume agradável, o olhar viajante, as palavras inesperadas ao pé do ouvido, na cama, dormimos ouvindo suas histórias de além-mar... Eis a nova estação: sinfonia romântica e eterna no corpo e na alma! Felicidade gratuita que a vida oferece de perder e se perder em liberdade, de deixar o outro livre para que ele voe alto, conheça novos e belos lugares e seja – ou volte – mais feliz; pois o amor se dá em liberdade e a verdadeira liberdade apenas dá-se em amor.
Coisa triste mesmo é ter e não possuir, estar com alguém ao lado sem tê-lo por dentro. Essa é a solidão a dois, é a ausência de si em si mesmo, é como ver o paraíso e não degustá-lo. Manuel Bandeira sabia bem o que era estar do lado de fora do paraíso quando, dos Arcos da Lapa (Beco), escreveu: "Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? – O que eu vejo é o beco".
Ninguém é propriedade de ninguém. Se fôssemos donos uns dos outros não permitiríamos que nossas propriedades fossem embora - ainda que próximas de nós. A casa se vai, mas o espaço que nela preenchemos será eternizado:
Vão demolir esta casa.

Mas meu quarto vai ficar,

não como forma perfeita

neste mundo de aparências

vai ficar na eternidade

com seus livros, com seus quadros,

intacto, suspenso no ar! 
(Manuel Bandeira)

Vinícius chorou a saudade de sua amada até o momento do reencontro em que viram estrelas, sorriram, choraram abraçados, provaram novos e apaixonados beijos.  Amor é ida e vinda, ter e não possuir, dar e receber, perder para ganhar...
Sofia voltou porque os deuses não sobrevivem sem a beleza, a arte (que existem para encantar  a insuficiência das existências). Por isso, os deuses, em suas astronômicas solidões criaram os mundos e os humanos – seus aconchegantes lares –; é que até o paraíso sem o calor humano e sem ter com quem compartilhá-lo, torna-se entediante.
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