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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Ária do corpo etílico - parte 3/ final - por Sergio Martins





O domingo se encorpa e ela apenas passa; tornando vulgar e sem graça tudo o que vem após si. Já na cama, onde a leveza de sua tez pálida ainda guarda alguns traços de maquiagem e seu corpo inteiro parece ser ainda mais flamejante sem a aragem crepuscular, ela há de sonhar antes do sono e deixará cair as palpebras à meia-luz do quarto, crendo que sua manhã é um olhar forasteiro. Seu amanhecer é a noite em que a flor da juventude desabrocha e apaixona-se outra vez para morrer definitivamente nos braços da infinita e sombria vida. Apossada de sono e de vinho, traga o fumo, abraça o travesseiro e sorri aquele risinho de menina que acaba de conquistar um presente inusitado; pois, embora satisfeita, sabe que há muitas auroras à espera de sua luz.

Imagem: Google

terça-feira, 28 de junho de 2011

Ária do corpo etílico - parte 2 - por Sergio Martins

Agradecida, a matutina realeza se curva bailando a luz mortiça de seus cabelos dourados acima do suburbano e vil tapete - em que a moça embriagada vai trilhar. É assim que ambas se comprazem, uma dedilhando à outra numa sintonia de instrumento e acordes e dançam, ziguezagueando suas canções que se entrelaçam em dores e gozos de um só e imenso amor.
Como é frágil, tocante e cálido o corpo magro de alva manhã, que desperta o sol profano no íntimo dos olhos que a espreita desviar-se o rosto num quase adeus de madrugada à festiva de mais uma alvorada!

Imagem: Google

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Ária do corpo etílico - parte 1 - por Sergio Martins





Ainda é noite se ausentando do ocidente quando surge a dama da noite exalando o brio hedonista pelas ruas quietas e tristes desse fim. São vacilantes e mui não firmados seus pés macios e pequenos que à aurora desse gueto vem despir. Tão logo, abrem-se os botões de um Jardim Novo* - feito sorriso após a delongada espera. É aí que os ares todos dessa feiura de cidadezinha se enobrecem com sua aparição de estrela principal num simples amanhecer. E acorda esse ínfimo Realengo*  para se dessedentar no doce bordô de seu corpo etílico...


* Jardim Novo é o nome do sub-bairro de Realengo (zona oeste carioca) onde moro.

Imagem: Google

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Demora - por Sergio Martins




A lua distante e frívola no mármore negro vem estrelar o tempo em que sua boca pintava-se ao meu acento – circunflexo. O fugidio sol de inverno entre nós qual flor da tarde de vida breve é navio atrasado que vai ao encontro de quem lhe espera ansioso. Aguda e gélida, a brisa estremece o corpo e remete à alma todas as cartas e amores desejados que não chegaram aos seus destinos. O crepúsculo delongado dorme aos braços da noite silenciando a crueldade humana como um velho que acende o cachimbo e com seu olhar vespertino, da calçada, vê a beleza que passa alegre na rua ignorando toda a antipoética existencial. Os galhos secos movimentam-se à sinfônica dos gotejos de chuva duradoura feito acordes de violino anunciando a demora de um mundo sonhado, a melancolia junina, a beleza triste – dor de um divino prazer.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

Verve - por Sergio Martins





As estrelas parecem mais próximas
e talvez, não tenhamos neve neste ano.
São vidas que se enlaçam após a guerra,
amor que se encontra na velhice,
o antigo piano entoa sua mais bela
canção... E tudo é como você me disse:
"dê-me a chance de fazer o melhor possível".
Delícias da culinária, prazeres de jardins,
paisagens maravilhosas, artes paradísiacas...
E tudo é como você me disse:
"dê-me a chance de fazer o melhor possível". 
Esse é o grito que salta da alma do poeta.

Imagens: http://simplesmenteelegante.com/

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Tempo-espaço por Sergio Martins


Este céu imóvel e fechado move-me estranhamente: fico paralizado. Trancado; qual ostra presa aos rochedos. No céu está minha fotografia revelada: embrulho sofisticado, tempo bem-humorado ocultando tempestade. Nuvens pesadas segredam cargas elétricas - olhos pessimistas escondendo lágrimas... O vento muda e leva o mal-humor do clima. A terra sentiu sede, mas permaneceu enlacrada no tempo-espaço: a ânsia aumenta as horas, o tédio encurta o mundo - pensamentos imprevisíveis adiando a sorte... A chuva tardia regou a campina, grânulos prateados ecoam pelo ar, lampejos no rosto que vejo no retrato, ideias germinam em velocidade improvável - bica que derrama  amores, canal onde deságuo meus reclames... No espelho líquido desse chão barrento que vai se ondeando  ao sopro da brisa, vi o firmamento parcialmente azul: bebê recém-nascido sobre o berço de nuvens alvas e acesas. Meu rosto clareado no tempo renovado desse espaço composto pelos fragmentos de escuridão e de beleza - é meu campo nutrido, sensação de dever-prazer cumprido, partida e chegada; leveza e alegria de um raro sentir.

Imagem: Google

domingo, 12 de junho de 2011

Soneto ao dia dos namorados por Sergio Martins




Desse Junho, não serão tardios os floreios
após as sinfonias inoportunas à lentidão
das horas e lágrimas que, de vez, secarão;
à manhã da vida imensa que bebo em teus seios.

Sem o desfolhar outonal dos namoros,
destingindo e arrebatando florais
no tempo-espaço em que amais,
restarão, da poesia, efêmeros choros.

Por que seus caminhos nuviosos não mais floris?
Colhamos, pois, a safra de nosso outono
cuja bebida abriga todo o amor, do qual, partis.

Venhas ao sol ou à noite fria para reinventarmos arte...
Oferto-lhe este dia na ânsia de dividirmos alegria, daí,
quererei apanhar-te do corpo quente todo o chocolate.






quinta-feira, 9 de junho de 2011

Frutos do outono por Sergio Martins





Os Ipês estão desfolhados no coração desse meu Jardim Novo*,
sem as flores, os sabores e os perfumes dos antigos amores
as tardes de sábado são gris, aos domingos são vazias as noites.
No frio, nas chuvas, nas ruas... tudo é só beleza triste de um povo
que carrego comigo: seus mundos, suas ilusões, suas dores;
pois sou esse chão – capim outonando, amargura dos seus licores.
Os livros, o café, as fotos e toda a falta até o fim da taça eu sorvo,
sinto o tapete de folhas nos pés desse réu do amor aos tambores
de tuas canções e, em vão arrisco fugir dessa poética de açoites.
Mas as flores voltarão a se encontrar pelo chão,
o céu em luar há de revelar e tragar a escuridão
e, talvez repenses aqueles sonhos antes do sono:
bons filmes, nossas artes, nossos frutos do outono.

* Jardim Novo é o nome do bairro onde moro

Foto: Google

terça-feira, 7 de junho de 2011

Broto de bananeira - parte 4/ final - por Sergio Martins


Enquanto criava o belo jardim em meio à aridez e a poluição desse solo, passei muitas vezes pela esquina do medo. Após o medo, o sabor da conquista. Agora, nos deleites do jardim, deixo meu broto de esperança na terra estéril: vença o trauma que te impede de arriscar, a ideia de inferioridade que obstrui os sonhos, as preocupações demasiadas que sufocam a paz, a preguiça de não fazer um caminho extraordinário para ser trilhado, a timidez em revelar seu eu-interior, a culpa que só atrasa a paz, o medo de desabrochar para o amor... A partir de hoje, sua tarefa é apenas cultivar um clima favorável para o crescimento do broto sem se importar com a ameaça das pragas. Saiba que vencer pode significar morrer por causa da aventura de um viver intenso que tudo arrisca, mas não se ganha um troféu sem se colocar à disposição dos perigos; portanto, ser vitorioso é primeiramente atropelar o medo sem jamais se esquecer do broto: a história que é preciso deixar como sendo uma paradisíaca herança na alma do próximo.

Imagem: http://www.lookfordiagnosis.com/portuguese/

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Broto de bananeira - parte 3 - por Sergio Martins




Para minha surpresa, a bananeira seguiu sua definitiva partida após presentear a terra com seu broto. Um broto de esperança. Só depois fiquei sabendo que na sociedade das bananeiras há uma regra: antes da viagem definitiva, cada uma tem o dever de deixar um broto como sendo a materialização de todo amor recebido em vida. Lembrei-me da lição de Sheakspeare na estória de Romeu e Julieta: nossa vida e nossa luta não deve ser apenas pela liberdade, mas sobretudo para seguirmos o sonho e a felicidade no amor; caso essa expectativa seja frustrada, somente a morte poderá nos livrar da cruel prisão existencial.

sábado, 4 de junho de 2011

Broto de bananeira - parte 2 - por Sergio Martins




De vez em quando fico inquieto, crio o hábito de observar tudo e provar um pouquinho de cada coisa; com isto, o tempo passou e eu deixei de observar a bananeira. As muitas ocupações não me permitiram acompanhar sua gravidez e o nascimento do seu cacho de pequeninas e fartas bananas que gratuitamente foram amadurecendo nesse pedaço de paraíso que se perdeu por aqui. Depois o tempo foi subtraindo sua força e eu também não percebi. Sua vida estava ameaçada por uma praga. E diante de sua morte, pensei na hipótese da bananeira sentir medo. Medo da morte como qualquer ser vivo diante do perigo que confisca sua graça existencial. Logicamente, não é só a morte que causa medo, a beleza também. Eu já senti medo da imensidão do oceano, do mergulho em águas profundas, das ondas e correntezas, do alto dos montes, da calmaria sinistra no ventre de um matagal, do olhar sedutor da deusa que todos os dias me consumia, daquele amor todo que crescia mais do que meu ser juntamente com a expectativa da perda... Mas foram medos amenizados quando entendi que eles só tem a ver com a rejeição ao aprendizado, a liberdade de escolha, a perda do controle sobre os outros, a falta de aptidão em lidar com a finitude, com a realidade humana e natural...

Foto: galeria de Maíra Ventura - http://www.flickr.com/photos/21664287@N08/with/5455943019/

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Broto de bananeira - parte 1 - por Sergio Martins




Ao lado de minha casa havia um muro baixo que me permitia o acesso à casa da minha tia. O muro foi levantado a pedido dela porque suas duas cadelinhas desciam ao meu quintal e faziam aquela bagunça. Todavia, eu fiz questão que se construísse um muro baixo pois não queria ser privado das alegrias naturais que livremente passam em seu quintal. Já me bastam os altíssimos muros que os gigantes egoístas criaram a fim de que gente de alma infantil não possa usufruir a plenitude do paraíso!
Foi inevitável. Em nome da privacidade e do progresso, a beleza da casa da tia foi murada. Mas antes que isso acontecesse, eu desfrutei bastante de seus encantos e lições. E dentre as muitas atrações do quintal da titia, para mim se destacou uma jovem bananeira esbanjando vida com seu corpo forte, macio e verdíssimo que se tornava dançante ao som do vento. Bananeira pronuncia ternura, por isso mesmo é considerada frágil. Pra mim, sua fragilidade é romântica e não tem nada de impotente; pois para quem viaja nos mares do coração, entende que a sensibilidade expressada em seu choro singular é o seu ponto mais forte: tentativa de fazer os humanos degustarem sua poesia.


Foto: Galeria de Maíra Ventura: http://www.flickr.com/photos/21664287@N08/with/5455943019/
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