Páginas

sábado, 28 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte V - Sergio Martins

Solidão já é tratada como epidemia no mundo e impacta até na ...



O mundo contemporâneo e suas formas de interatividade reafirmam que somos essa contradição: ninguém é uma ilha - no universo onde todo homem é uma ilha.
Distante da multidão, o mundo atual experimenta a nova solidão, a que é compartilhada-todos estamos unidos pela mesma solidão. Fugir disso é se prender numa dolorosa utopia, porque o confinamento nos permite refletir sobre o que realmente representa a liberdade do corpo e da alma... O caos revela os segredos escondidos e esquecidos pela distração: retornar aos afetos e aos prazeres da solidão, de modo que a busca de si no outro é um engano doentio e a dependência emocional é a violência contra o único caminho da paz interior, pois cada um tem suas próprias digitais, sua identidade e suas saídas...
Na solidão, entendemos melhor o inferno que são os outros - os que tentam matar a querida amiga solidão. É que a solidão representa vazio para muitos... Acho, dentre outras questões, que o pavor de estar em solidão é ausência de criatividade: “Se você não encontra o sentido das coisas é porque este não se encontra, se cria”. (Saint-Exupéry) Todo confinamento é crise se não tem criatividade, a novidade poética nos olhos que faz as manhãs serem novas e únicas... É claro que todo paraíso é entediante quando não há com quem compartilhá-lo, mas é a solidão que nos aproxima de nós mesmos e, distante de si, nenhum ser consegue se achar - bem no outro.
É óbvio que tenho saudade da vida sem quarentena, mas para mim, que vivo em recolhimento, a solidão é uma divindade indispensável à vida, portanto, como escreveu Nietzsche, também “Detesto quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia”; isso porque, todos os que os que repudiam a solidão sempre me ofereceram seus violentos vazios, de modo que parodio a música: Ter saudade até que é bom, é melhor que caminhar COM OS VAZIOS.
Quando a solidão não é doença e isolamento social não é apartheid, compreendemos, que a pior\real morte é experimentada em vida - em todo o tempo que desperdiçamos em ressentimentos e tristezas insanas e não desabrochamos o amor, perdendo-nos do caminho da paz. De resto, permaneço separado, embora junto na mesma solidão secular, pois “A natureza dos homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêm separados”. (Confúcio)
Retornando à contradição, eu preciso de outros sentidos, os que representam não-sentidos para o senso comum: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”. (Clarice Lispector)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte IV - Sergio Martins




Todo isolamento nos expõe ao espelho (monstros e ídolos), à possibilidade de (nos) aceitar e caminhar para dentro de nós mesmos\ autoconhecimento, mas precisamos ter cuidado, somos parte do que vemos do lado de fora, os monstros: “quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro”. (Friedrich Nietzsche)
Ora, todo monstro é criado pelo homem, pois o homem é o monstro-vírus-mor - o mal capitalista... O novo monstro não é o Covid-19, mas a antiga doença humana, o pecado capital (ismo) - a cultura do consumo que nos consome a alma é o monstro que criamos e que nos tornamos - de tanto olharmos para ele.

O Frankenstein contemporâneo é o egoísmo, o prazer pelo prazer sem filantropia, o utilitarismos e  a futilidade dos relacionamentos, a antiempatia, a vaidade de um viver vazio - o esforço pelo enquadramento na insossa existência que maquia o ódio e a banalização da vida...

O monstro também é revelador (políticos e religiosos se transparecem): o paraíso e o lugar ao sol oferecidos pelo capitalismo são fantasiosos, a sede pelo poder e o ter pelo ter é autodestruição... a vida é o bem maior - possuir sem ser possuído... Portanto, ignorar o monstro e suas verdades é a negação de si mesmo...

O isolamento social só é patológico quando não há a apreciação e a amizade pela solidão, o desconhecimento dos prazeres da solitude... Distantes da euforia e da aglomeração de pessoas, podemos refletir\ o reflexo do espelho, embora pensar, para muitos é doloroso (o silêncio é irritante quando ecoa a histeria da alma), todavia, é na introspecção que acontece o milagre, a oportunidade de encontrar a saída: ser si mesmo...
Ninguém é o mesmo após a experiência quase morte, sairemos dessa condição mais humanizados ou mais monstruosos... 

quinta-feira, 26 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte III - Sergio Martins

Resultado de imagem para abismo


Nessa fase cuja vida caminha fragilizada e a saúde do pobre é banalizada em prol do dinheiro e poder, vi um homem catando alimento das lixeiras e dividindo tudo o que achava com seus gatos. Ali, recordei de Manuel Bandeira e da certeza de quem é o bicho matador de tudo o que é bom e bem:
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Pus-me a observar aquele homem durante muito tempo, notando nele o abismo que traduzia meu ser - "E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”. (Friedrich Nietzsche) Sair à rua é como brincar de roleta russa e o isolamento é pique-esconde com o bicho malvado... Eu brigo neste pique-pega infernal: o bicho pega o homem que pega o bicho... O bicho está pegando!!!


segunda-feira, 23 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte II - Sergio Martins







A sonolenta luz do poste pesa mais fosca, letalmente ofusca os olhos-transeuntes que persistem achar algum sentido na calmaria mórbida que sufoca o ar de um medo resignado: o mundo hoje apenas é pequenez claustrofóbica e fria.
Caminha em minha direção a música romântica e antiga, flutuando o cabelo ruivo da copa da bela amendoeira, como se todas as árvores perdoassem as violências humanas... Estático, o sabiá canta tristezas de solitudes para todo o vazio existencial - ao longe, o diálogo interrompido, o monólogo sem ouvinte, o casal se divide, distancia-se pela estrada-despedida, a saudade de lá já amarga as calçadas daqui.

O agouro entardece todo o dia, a pressa da noite é um grito violentando o tempo, uma ventania enlouquecendo o lirismo cosmopolita...
Livre dos alucinógenos, os passos errantes caem no pensamento lancinante, no limbo cotidiano, pois são racionais e vãos... Sem a fantasia e a mentira-catarse, não há cura-droga que os possa salvar das verdades destrutivas... Portanto, a Pneuma filosófica e a Pneumatologia teológica perturbam-se, espirram a impotência, cospem a poeira cósmica e o pó terráqueo (que é absolutamente tudo), caem na apneia da cidade em pneumonia...

- O rei está nu! Denunciam os plebeus.

O reino está exilado no reino que sempre foi exílio: a cidade ensimesmada, encimada de cristos-críticos, decência-decadência...

Tosse um velho capim, outonando num canto qualquer de calçada. A garganta da flor diminuta está sequiosa pelo fumo do tempo e enchem-se de fuligens seus pulmões, ao tempo que estou num resfolegar de algum sentido, semelhante ao semelhante que não pode respirar - sozinho no mundo insensato... Em poucos minutos, uma poça d’agua destruiria meu rosto - a imagem e semelhança da des-razão nesse ininterrupto não-lugar.

Ensaios antivirais - Parte I - Sergio Martins





Eu tenho tarefas por cumprir antes de partir... A vida sempre se apresentou como um papel ofício branco à espera de minhas letras, como se o meu lugar fosse hedonismo, isolamento, morte-vida, filantropia... Antes de partir, não poderei partir-me... Serei inteiro para mim mesmo, pois amo a doce voz que me diz: “conhece a ti mesmo”, “torna-te quem tu és..." Esse outono (queda de temperatura) é um chamado: “cair em si”, adentrar o caminho do ser-si-mesmo...
Antes de partir, ao menos, farei o melhor nesse pior e excepcional momento, que nos abre portas para estar próximos de nós, dos semelhantes e longe de toda energia ruim - dos amantes do caos.
Antes de fechar meus olhos definitivamente, terei a certeza de não ter existido pelo que é falecido ou que falece, pois vivi em prol da vida... Mais e melhor que na adolescência, estou aprendendo a morrer (apenas para o que é necessário), de modo que já não sei morrer (desta antecipação de pânico e medo) antes da morte, é que só sei morrer de/pela poesia, pelo prazer, pela dor-alegria - Graça divina dada aos oprimidos...
Tenho experimentado (sem egoísmo e com pesar) a convivência com a destruição sem permitir a destruição das minhas emoções, num degustar estranho dos prazeres essenciais, como bem me ensinou Robert Frost:
"Os bosques são adoráveis, escuros e profundos,
Mas eu tenho promessas a cumprir,
E milhas a trilhar antes de dormir”.
Ainda que atingidos pelas ruínas, sigamos reconstruindo-nos e ajudando na reconstrução de um mundo melhor, pois a vida é bela - apesar de...



Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Postagens mais visualizadas