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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O casebre - Sergio Martins





Já na infância, Maneco construiu seu barraco. O barraco era horrível. Maneco o detestava e tinha vergonha de morar naquele chão barrento. Não podia acostumar-se com os ratos transitando pelas vielas do gueto e entrando pelo portão, com o rio de lama que descia veloz pelos becos em tempo de chuva, com a reação de algumas pessoas após informar seu endereço, com a falta dos brinquedos desejados, das festas, de comida boa, de dinheiro para se divertir, de uma família que lhe desse amor... 
Seu melhor amigo, o moleque Washington, era catador de lixo e morador de rua. Ao pensar em Washington, Maneco sentia que tinha muito, um casebre. E isto passou a mudar seu olhar: menino Maneco, absurdamente, passou a encantar-se pelo seu barraco como uma soma de pequenos e diários valores que se constroem tornando-se indesprendíveis: o barraco passou a edificar em Maneco um lar doce lar. O casebre era um aperto. Não havia espaço para o sofá, para sua mãe com seus outros cinco filhos, suas roupas velhas e furadas eram guardadas em caixas de papelão, os poucos vidros da janela e das portas, quebrados e o restante de buracos por onde entrava vento e chuva, cobria-se com pano velho - o que o assaltava pela madrugada de um frio cruel em direção à sua cama curta – a cama e o colchão e o cobertor foram adquiridos por doação, por isso seus pés sobravam e se esfriavam demais –, viam-se ratinhos jantando nas sacolas de lixo do quintal, aliás, como tinha bicho naquele barraco! Pela manhã, formigas dentro do bule, nas paredes e na mesinha da cozinha onde se enfileiravam. Geralmente se apresentavam súbitas lagartixas e grandes borboletas que assustavam e no verão muita barata - às vezes, Maneco acordava com algumas baratas sobrevoando o armário sem portas ou por cima da televisão que um amigo havia achado num lixo, consertou-a e lhe deu como presente de aniversário. À noite, vira-latas faziam balbúrdia e os gatos se encontravam na laje da vizinha e miavam tão alto que era impossível dormir; isso quando os miseráveis não faziam de passarela as quebradiças telhas de seu casebre. Em algumas ocasiões, no momento em que tudo se acalmava e o sono vinha gostoso, os gatunos corriam pelo telhado fazendo um estrondo parecido com os estampidos provocados pela diária, cruel e letal brincadeira de polícia e ladrão que tanto perturbava a liberdade do bairro. Por lá, já apareceram corujas, micos, coelhos, cobras, sapos, gaviões, sabiás, pica-pau e até um caramujo gigante. Houve a época dos grilos cantando dentro dos tijolos e o som alto da vitrola do rádio que o vizinho bêbado deixava ligado à noite inteira; contudo, era prazeroso observar os pardais que entravam na cozinha para comer os farelos no chão.

Quando chovia tinha goteira para todo lado, uma cachoeira nascia de uma parede da cozinha e de tão frágil e fina espessura era aquele telhadinho que a ventania e a chuva forte parecia destruí-lo. No calor, a pouca ventilação e o telhado baixo faziam do casebre uma estufa.

Para construir o barraco foi um enorme sacrifício; não raramente, sem nenhuma ajuda, Maneco subia a favela com tijolo, cimento, areia, pedra, ferro... Seu corpo magro e anêmico, ao fim do dia ficava moído. E assim, as colunas foram erguidas bem finas, as paredes tortuosas e sem emboço; com o passar do tempo apareceram as infiltrações, o chão cedeu mostrando buracos por todo canto, do banheiro muito mofo, areia acimentada se esfarelando, tinta suprimida por lodo, água minando do chão e muito reboco se desprendendo das paredes.

Naquele casebre não tinha tapete, máquina de lavar roupa, nem quarto; apesar disso, naqueles poucos metros de aperto cabia muito amor e amizade que Maneco experimentou e muita vida feliz que o tempo não pôde confiscar.


Maneco era autodidata; intelectual. E por ter estudado bastante e formando-se em ciências tecnológicas, conseguiu empresariar seu próprio negócio, dando assim, uma vida confortável aos seus pais, irmãos, esposa e filhos. Moleque Washington saiu das ruas e veio trabalhar com Maneco. Mas atualmente, a correria pelos empreendimentos e essa ideia de maturidade de gente grande parece roubar de Maneco o colorido do tempo em que era menino desprovido, solto, peralta e feliz. Agora, todo o universo dos negócios que exila o coração de Maneco, o enriquece de saudade, de um desejo de manter a vida mansa e simples, os amigos e toda a paz que a pobreza daquele antigo casebre lhe ofertava e deixava sobrar.

domingo, 13 de outubro de 2013

Claridade - Sergio Martins





Dona Lúcia havia ficado sem energia elétrica, pois o eletricista bêbado disse para ninguém tocar nas tomadas até ele voltar e terminar o serviço. No outro dia, pela manhã, esquecida do conselho do eletricista antes mesmo de notar as novas tomadas, num impulso costumeiro, por intuição, dúvida, curiosidade e anseio de claridade, apertou o botão. E para a surpresa de todos, as luzes se acenderam.

Plano - Sergio Martins



Toda vez que o Smartphone toca: “I miss you” você responde: “I miss you to”.
Seu olhar ainda toca os dedos de Jack enquanto ele lhe ensina os truques de computador e quando ele ouve o Johnny Cash é porque seus últimos dias parecem uma voz sepulcral, um timbre de lágrima seca; mas após beber toda a taça de seu vinho de abacaxi, sempre vem uma noite de prosar em alegrias...
Um dia você disse sobre indecisões e confusões e alguém te perguntou: você tem um plano? Então, Jack se calou pensando: “planos, linha retas, bom-senso, perfeição... toda essa estrada muito certinha deve ser tão chata e cansativa...! Meu bem, há tempos desejamos e hoje brincamos nesse gira-gira parecido com o mundo em seus movimentos luzentes e coloridos que não se encaixa a tais planos inflexíveis... Já são meses sem tomar antidepressivos, por isso, vamos dormir tarde, isto é, acordar bem cedo para o que sonhamos...”

Você não sabe desligar esse aparelho, nem recorrer à eutanásia e Jack só tem um guarda-chuva bem grande para esses dias... É, você diz que vai mal e não tem um plano... Mas Jack parece sentir que o amor tímido de sua menina permanece forte e crescente diante do temor que a iminente morte nela provoca - como quem não se sente falecida e por isso não pode receber o buquê de flores que enviaram para o seu imerecido e precoce funeral.

Salva - Sergio Martins






          "A morte salva?

          Amor, te salva:

       Amor te salva!"      


          

Domingo - Sergio Martins





Porque é domingo, jogo futebol pela manhã, nunca assisto TV, passeio de bicicleta, uso a máquina de escrever, ouço vinis, faço desenhos, o passarinho do vizinho parece desconhecer o silêncio, (há anos ela, a bela menina, me chama pra almoçar e talvez nunca desista porque de vez em quando eu atendo seu convite), os amigos também me querem por perto nesse horário, eu sinto uma necessidade enorme de passear de bicicleta, de ver se as flores já brotaram ou se as árvores passam bem... Para os beatos que vêm ao meu portão me dar boa educação religiosa, digo que sou ateu e agradeço a visita. Na infância, a contragosto, eu era levado à igreja, lembranças de domingos vazios; desperdiçados no devir religioso... O pesar de ter vivido esses dias vãos - transformados na alegria da libertação - agora me põe ao trabalho de embelezar a esquisitice dominical: ver o transitar das pessoas na feira, sentir o cheiro das frutas, encontrar gente interessante, tomar caldo de cana, comprar laranjas e mangas e de vez em quando o camarão que preparo no alho e óleo. Já disse que o domingo me remete ao trabalho, mas o sentido maior desse esforço é a certeza de seu resultado: o prazer. Domingo é isso: o prazer de reencontrar a infância e saborear das velhas e paradisíacas brincadeiras...

A travessia - Sergio Martins






Não era porque eu ouvia o primeiro movimento de uma sonata em piano de Mozart ou porque as gotas de chuva na estrada de terra formavam passos em direção à outra estrada. Talvez fosse o fato de eu preferir estar sempre naquele lado da rua e ter a presunçosa certeza que de lá não sairia... Do outro lado, estava a velha moradora de rua e ela resolveu movimentar-se e chegou ao lado de cá onde os jovens universitários foliavam ao samba. Ela entrou na roda samba e dançou mais que todos...
Sei que fato como este palavra alguma poderia definir, porém, isso me direcionou como se eu também pudesse apenas viver a minha vida e tão logo, sem hesitar, consegui atravessar a rua...


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