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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Raul por Sergio Martins



O quarto está vazio.
O tempo se fechou.
Já não sou mais abrigo.
E você, nunca amou?

Meu corpo está frio.
A porta se trancou.
Há respostas sem carinho.
Estou no ar que se apagou.

Me acalmo. Ouço o grito:
a alma se cansou...
E pra não dormir sozinho
uma ilusão me incendiou.

Meu espaço corrompido
o vento balançou;
eu choro e admito:
a diversão me estragou.

Imagem: http://drinkordiee.blogspot.com/2010/07/quarto-escuro.html

A perambeira por Sergio Martins



Na beira do abismo arreda não,
se joga e vai viajar.
Na eira, o risco é o pior não,
tristeza é não trabalhar.

Na fraqueza, no vício, se entrega não,
o sonho não pode acabar.
No medo, no escuro, se “avexe” não,
é feliz quem consegue arriscar.

A perambeira é melhor
que a segurança sem vida,
pouco com Deus é maior
que fartura fugidia,
sem poesia no olhar
o mundo não tem alegria
e quem não sabe amar
é só vaidade e fantasia.

Foto: Google

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O poço por Sergio Martins



Em minha casa havia um poço. O poço era fundo, escuro e silente. As pessoas, com aquela presunção adulta, diziam que o poço, além de sombrio, também era mudo; as tais, jogavam seus corpos contra ele para moverem a rodela pesada que lhe servia de tampa, atiravam pedrinhas e gritavam com ele para ouvirem o eco de suas vozes.
Eu, contrário ao senso comum e fortemente dosado pela ambição de um ser-criança, sensibilizei-me com o poço- para mim, ter um poço é ter vida, poço é o lugar onde se encontra água saudável, poço é vital; não sei o que seria de mim sem aquele poço em tempo de seca- e diante de sua beleza, o meu silêncio era ofertado com reverência. E foi assim que, por sorte, jamais conheci a indiferença do olhar adulto.

Certa ocasião, a solidão veio num anoitecer frio acrescida à sensação de estar em ausência de mim em mim mesmo; me enderecei, não sei porque razão, ao poço lá pelas vinte e quatro badaladas em meio ao assombroso do quintal. Notei uma lanterna fixada abaixo da pequena telha de cerâmica cuja direção voltava-se para a boca do poço. Acendi a luz. Logo depois, removi a redondela pesada que se punha como tampo do reservatório; e a luz da lanterna que fluía de cima do poço refletiu o meu rosto em sua água cheia, me fazendo entender que nele eu me encontrava, ele era um-comigo, em mim ele se achava.

Com o passar do tempo, comecei a viver um caso de amor íntimo e correspondente com sua beleza. O meu ser-si-mesmo já era outro: Um poço querendo se aprofundar e se apossar de tudo o que é belo, simples e enigmático. Em tudo o que eu assentava os olhos, sentia um encanto, o mundo namorava minhas retinas, aquela doença incurável de ser-criança, felizmente, transformou-se numa atração maravilhosa, viva e inseparável de mim; nem os meus ouvidos escaparam, aliás, foi através deles que eu descobri a mentira que os mais velhos infernais diziam a respeito do poço, sem a qual, conquistei uma graça única: as vozes do poço.


Desenho: galeria de Neil Hergl / http://www.flickr.com/photos/neil_hergl/
Texto: fragmento de meu livro As vozes do poço

sábado, 18 de setembro de 2010

Soneto à Maricotinha por Sergio Martins





No quadro, a beleza das olheiras era conceitual,
pois a paixão só habitava os olhos do seu pintor
embebedado pelo encanto, condenado ao amor
de poesia que namorava a sabedoria maternal.

Havia cravos, buço, costas encurvadas, nariz bico de tucano,
palidez, magreza, cabelos desbotados, insegurança e pirraça,
porém, nela ele era feliz trovador, degustava até a última taça
e levitava no farto regozijo de um quinteto para cordas e piano.

Comida boa não tinha, nem a libido que ele desejava,
faltava, por vezes, a romântica feminilidade, a dança
dos lábios e calmantes carícias que ele necessitava.

Não era o que nela faltava, e sim, tudo o que só para ele era ela:
beleza de Carlota Joaquina e imaginação de Júlio Verne!

No adeus da moça ele diz: minha graça completa é a feiura dela.



Foto: Google

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um com o céu por Sergio Martins


"(...) Olhando no espelho de água do rio, o pajé pintava um admirável auto-retrato numa peça de madeira e na parte de trás do quadro ele narrava o sonho que teve na noite anterior do seu desaparecimento: a pressão contra meu corpo frágil e indefeso ganhava um impulso assustador e eu apenas sorria feito curumim recém-nascido que nunca abriu seus olhos para o novo mundo, mas que, milagrosamente, sabe oferecer um sorriso de gratidão; até que abandonei o cajado, me agarrei a uma pedra e resolvi abrir os olhos. Tarde demais. Os raios de vento estavam a ponto de perfurar minhas retinas, meus dedos se desprendiam da pedra enquanto a rapidez enérgica da corrente de ar me conduzia numa gravitação improvável, o uivo da ventania ensurdeceu o restante de minha pouca audição no instante em que já era quase impossível respirar a poeira úmida e pesada que degradava meus pulmões e me tonteava. E antes que minha pele e meus nervos se fragmentassem; deslizei da pedra e vi a maior, a mais bela e a mais luzente de todas as águias da montanha sagrada; e finalmente, semelhante a um pássaro livre e realizado, levitei girando rumo às nuvens tornando-me um com o céu."


Texto - fragmento de "Um com o céu" - de Sergio Martins
Foto: Google

Soneto de Domingo por Sergio Martins

                                              

Assim que a luz tardia de Setembro acariciou teu rosto,
teu olhar noturno decaído pelas minhas sandices
levantou o brilho das castanhas dóceis, e os artífices
que usei para possuí-las foi o fim do mais nobre mosto.

Foi calmante e mui espiritual o frio da tarde,
a mensagem do teu rosto pueril e vivácido
que embora conflitante, roubou-me o ácido
do corpo que me insurgiu na falta de tua arte.

A clareira no olhar da menina viçosa e indiferente
ao meu afã de regar amor em sua primavera, criou
o riso às vésperas da morte desse mundo doente.

E em pranto, fugi– pela noite cruel–; de mim mesmo arredio.
Ah! quem me livrará do terror do lirismo voraz e da devoção
à beleza que se manifesta nesse domingo permanente e vazio?



Foto: Luís Miguel

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Sente por Sergio Martins



Inocente sente o hino
Sente o inocente hino
O inocente hino sente
Hino sente o inocente
Assente o inocente hino
O sente hino inocente
Hino inocente o assente
Inocente assente o hino
O inocente sente hino
Hino o sente inocente
Inocente o hino sente
Sente inocente o hino

Arte visual: Leandro Pontes -  http://lendonaspontes.blogspot.com/

É primavera! por Sergio Martins


Outra vez o céu anil se estende sobre as árvores favorecidas pela geada de uma madrugada nebulosa. À música encantadora dos pássaros, uma cintilante manhã se espreguiça sobre os primeiros e ressuretos olhares...
Nova manhã, novo ser, olhar único e ansioso qual flor inocente, sequiosa pela luz.
A primavera vem, degelando os picos das montanhas, convidando as gaivotas e fazendo o colorido brilho na imagem que se embaçou pelo tempo cruel: por ser despertado, o amor foi correspondido...
E quando acharmos que a friagem existencial nos levou tudo de precioso e que não existe mais nada que possa nos tocar a emoção, Setembro chega exaltando o sagrado encanto na magia extravagante dos ipês, trazendo mais uma surpresa agradável, ressuscitando toda a graça do nosso caminho, a história de amor recomeça, resistindo aos ataques, triunfando sobre a idéia que a morte é um fim definitivo. E por trás da colina o sol reacende, dourando as campinas com seus raios oblíquos, ouve-se a festa das cigarras, os crepúsculos se tornam mais jovens, as amendoeiras nos presenteiam com o lindíssimo mar de bronze de suas copas...

É a vida nos despertando a beleza do eterno acreditar...
E então, após muitas primaveras os nossos olhos se inebriam com o feitiço divino e nos tornamos poetas e filósofos; é quando adquirimos a melhor maneira de pensar a vida que é através da poesia viva de cada manhã; pois para quem se alimenta da beleza viver é a melhor recompensa.

Foto: blog Olhares

Soneto de Setembro por Sergio Martins


De mais um melódico e nostálgico Setembro
ainda bebo toda a boemia noturna do prazer,
e fumo a lembrança aromática do teu ser
macio; cuja graciosidade bem pouco lembro.

Pelas tardes frias em que faço caminho errante
ao vento alucinante desse adverso primaveril,
teu olhar embaça sob a chuva, e no céu, o anil
se esvai na minha taça crepuscular e amargante.

Por esse ar suave não floresceu tua alma campesina...
Busca e desencontro. Perderam-se, da face da menina,
as maçãs, e dos olhos, as castanhas - agridoce sina.

Aonde puseste a ternura que florias com vigores e audácias?
E como pôde findar as luzes primaveris (com suas falácias)
e os sonhos; se ainda tens metafísicos Ipês e nossas Acácias?


Tela: Monet, "Primavera em Giverny" (1890)
Fonte: Google

Soneto aos Ipês de Setembro por Sergio Martins


À bruxaria de teus olhos o estar suave planou,
estendeu-se, regou de orvalho o solo árido
e o sombrio das flores se desfez no cálido
farol de teu gozo: tempo de amor que não voou.

Sobre o calor de tua pele fez-se brisa afetuosa
o meu ser vazio, suas mãos suadas se abrem,
seus cabelos volitam e seus cânticos sobem;
daí termina a agonia desta estrada pedregosa.

Meu corpo destoa e é desconjuntura de atrair dó,
mas se lhe dedilho todo o prazer da alma podes
musicar-me; é quando sou além de uma letra só.

Te vi mui agradecida aos trilhos errantes dessa cidade,
sorrimos felizes iguais Ipês de Setembro e tão logo
atirei as ânsias todas em alto-mar livre da má saudade.

Foto: meu acervo botânico

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A poça por Sergio Martins




Na poça escura de tua calçada vi a luz dourada do poste tremulando ao vento fresco de Setembro e de tempo em tempo, se fragmentava às vibrações do som e das lágrimas da garoa... Estive ali por um considerável e bom momento absorvendo toda diversão daquela graça incomum, qual menino bobo, sonhando com o brilho colorido que esta vida nebulosa pudesse me presentear como a água límpida das nuvens acinzentadas que me dedilhavam sutilmente, e assim, enchi-me de um apetite insaciável de me realizar num outro tempo que era só nosso. Desejei como nunca, eternizar-me neste feitiço do olhar que me persegue a alma e que minha vida inteira fosse aquela poça obscura, interminável e iluminada por sua dispersa e distraída poesia.

Foto: Google

Toda a casa por Sergio Martins


Entre os corredores, quadros: paisagens arborizadas de Setembro.
Ao fundo dos quartos, retratos: marcas impressas na antiga porta.
Pelas cortinas de véu fino, há lembranças de um casamento perdido, um perfuro em meu olhar iluminado – rastros sorridentes de uma jovem decoração...
Da sala, o silêncio de uma inesgotável intensidade contrastando com as paredes em tom modernista...
Em toda a varanda há brinquedos solitários e espalhados até a escadinha de azulejo que segue para o quintal empossado pela calmaria vespertina, pela suavidade da Flor-de-Lis, pelo doce aroma das mangas, pelo tapete de grama e pelas milhares de folhas e flores coloridas no chão arenoso, o qual, ainda guardava suas pegadas aprofundadas em suas minúsculas e macias dunas como as areias do seu litoral festivo...
Pela fresta da janela central, um raio de luz se desprendeu da cortina cinza-escuro das nuvens clareando uma parte do piso verde-musgo da cozinha, mas logo se foi deixando um estar enegrecido. São luzes e sombras num passado-presente da velha casa recém-restaurada pelos eufóricos espíritos. E na ausência de todos eu fico perambulando por todo canto feito um espírito preso num cemitério: me sinto em férias do mundo, , colho Lírios e Crisântemos, fico num vazio descomunal, frio adentrando-me que não acaba mais e assim, vou apalpando pedras, plásticos, ferros, móveis... para verificar se meu corpo ainda está; me sentindo tão próximo de mim mesmo que chego a me abraçar – afago de espectros ambulantes de um mundo-presídio...
E quando prostrado no chão de cada cômodo, me faço como cada um deles: olhar rebaixado que só vê cacaréus reconstruídos e coloridos, ar úmido e rarefeito – águas insípidas e paradas neste pouquinho de terra apaziguada e abandonada- sujeito velho, redesenhado pela história, inserido num radiante e transcendente enigma.
A tarde amplia o escuro ao tempo em que o sino da catedral retine místico e afetuoso e à meia-luz do abajur, fixei meu olhar num pedacinho de tinta que soltava-se da parede e aquilo já era segredo desvendado, presente adquirido, uma parte descolada em mim: viagem não degustada, lar não habitado.

Foto: Google
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