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sábado, 19 de maio de 2018

O amigo-oculto - Sergio Martins


                                                  

 Era quase Ano Novo. 
 A comunidade Pé Rapado estava sob efeito tranquilizante: aos festejos, abandonavam-se as tristezas em copos descartáveis com bebidas baratas. No alto do morro, ostentando a contradição ao espaço, chegavam os convidados da Zona Sul em carros de luxo, joias e roupas de grife. Dizia-se que vinham para o banquete de amigo-oculto.
Contagem regressiva.
Rufaram os tambores: gritaram os morteiros, pediam atenção para o momento esperado as granadas de luz e som.
       À meia-noite as bombas estouraram – o céu era a imensa tela do cinema, cujos expectadores lançavam milhares de pipocas – o pipocar fogueteiro arremessava incríveis linguagens acústicas aos violentados ouvidos. Os fogos estalavam e luziam como pétalas no vendaval, misturavam-se aos estampidos de variados calibres – aquela iluminação pintava o ar da favela de celebração, apavorava os animais, aborrecia o silêncio sagrado dos melancólicos. O céu se transformou numa eufórica máquina fotográfica reproduzindo flashes coloridos pelos becos. Quando os rojões zuniram e as malvinas cantaram em rouquidão juntos às salvas de tiro, formou-se uma completa filarmônica, cujos graves e agudos entoaram com mestria uma sinfonia de percussão.
       Surgia entre os plebeus da corte e os nobres convidados (todos com ouvidos e olhos sofridos pelas luzes e barulhos) a novidade: o amigo-oculto. Distribuía bebidas, dinheiro, eletrodomésticos, brinquedos e comida, apregoava a virada, a revanche, as boas-novas: a queda do inimigo do reino - morto o antigo dono da comunidade, findava-se a ditadura.
- Vida longa ao rei socialista!
    Saudou um ilustre fidalgo, exibindo o Saint James 12 anos.
- Essa parada mermo, meu cumpádi!!!
   Exclamou um plebeu; desafinando a harmonia do concerto, levando à boca o mel com catuaba.
- Tudo nosso, parceiro!
Fazendo caretas e um tanto nervoso, tentou consertar a gafe um bobo da corte, sem entender do que tanto riam. É que fora os trejeitos elétricos e desengonçados, tinha todo o nariz sujo de poeira branca.
                                      





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