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sexta-feira, 18 de maio de 2018

São Lázaro - Sergio Martins


                                        




              
Na favela de Manguinhos, em meio a um acampamento de cracudos, morava Lázaro, numa casinha de cachorro.
- Seu  Lázaro, os ómi, tá na área!
Assim avisavam os zumbis do craque quando os milicos perturbavam a área de lazer dos viciados.
- Bando de cães, esses vermes militares! Gritava o velho Lázaro, adentrando seu habitat canino.
Os Pm’s destruíam as barracas de camping do parque de diversão dos drogados, mas nem sempre, a morada de Lázaro, isso porque, quando o mendigo ali estava, seus muitos cachorros garantiam sua segurança. Eram vira-latas famintos que se acalmavam com o aroma da maconha e se encolerizavam com a presença de militares. Um jovem soldado, querendo mostrar serviço para o superior, pedia permissão para atirar contra o acampamento e matar todos, mas o sargento, devoto de São Lázaro, gostava de cães e por isso protegia aqueles animais abandonados pelo Estado.
Seu Lázaro vivia por aqui e ali mendigando o que comer, pedindo moedas aos transeuntes. O velho mancava, sustentado por muletas. De sua cabeça aos pés, abriam-se as feridas de quando, embriagado de cachaça, caía pelos becos − os cães, seus fiéis companheiros, lambiam-lhe as chagas.
Todos os dias, o Senhor dos cães peregrinava em busca de alimento para si e para os seus canídeos devotos que se enfileiravam atrás do seu santo numa procissão bagunçada, ladravam na direção de ciclista, passantes e cavalos, perturbando a vizinhança e o trânsito de automóveis; todos malcheirosos e magrelos, uns com a pele muito prejudicada, outros doentes e mancos, espalhavam no ar o excesso de pelo e pulga.
Às vezes, cansado das andanças por esmola, o lazarento parava num canto qualquer e dormia. Caso alguém tentasse contra ele, a matilha o resguardava, se um moleque lançava pedra num cachorro, o caduco agredia com sua muleta, caso um automóvel atropelasse um cão, o homem cuidava de suas feridas. Assim se blindavam e trocavam afetos: protetores e protegidos estavam sempre juntos no partir do pão, na santa ceia diária, na comunhão e fidelidade em todos os momentos. Nos dias frios, Lázaro se enrolava com os cachorros num manto roxo e noutro marrom, reunidos, aqueciam-se, comiam no mesmo prato do homem. Após a refeição, cada um tomava uns bons goles de cachaça, os bichos limpavam a língua na cara no seu dono em agradecimento, em seguida, todos se coçavam, trocavam carrapatos e carícias.
- Seu  Lázaro, os ómi, tá na área!
- Cães do Estado! Cambada de lixo!
Quase todas as noites, o tiroteio turbava o sono dos moradores da favela. O sargento queria prender o chefe da boca de fumo de qualquer jeito. Daí a repetição da cena: o tiroteio, o soldado jovem querendo matar, o sargento protegendo o acampamento, o protesto de Lázaro, os cães correndo em direção à polícia, expulsando os invasores ­­­­­­˗ ­­a segurança pública que tanto era execrada por ali.
O jovem PM, aproveitando as férias do sargento e inconformado com a sujeira social, decidiu limpar o lixão da favela. Juntou rapidamente um grupo de limpeza e rumou ao local. O tiroteio durou a noite inteira.
O grupo se apossou de algumas armas e drogas, mas não obteve sucesso quanto à apreensão do chefe do tráfico, e isso, além de ferir o orgulho dos homens da lei, provocou-lhes imensa fúria. O jovem prodígio militar admirava um fuzil AK-47 sob um tesão que o determinava a ir mais fundo na loucura. Aquele brinquedo sofisticado dos deuses da guerra, o enfeitiçava, e logo que o rapaz abriu um sorriso nervoso, sem hesitar, apontou a arma em direção ao acampamento dos cracudos e brincou de ser Deus.
No dia seguinte o sargento lamentava a nota da imprensa que trazia a morte de algumas pessoas em situação de rua por conta de um tiroteio entre traficantes e policiais. A ação criminosa, segundo o noticiário, seria por parte dos traficantes, pois os projéteis atirados contra o acampamento vinham de uma arma de fabricação russa, e que os viciados, protestando a incursão militar, bloquearam as Avenida Pastor Martin Luther King e Dom Hélder Câmara, atearam fogo em toda espécie de lixo, incineraram muitos ônibus e houve muitos feridos, arrastões, falsa blitz e assaltos a motoristas.

Próximo à casinha de cachorro peneirada de bala e salpicada de sangue via-se um folheto da oração do padroeiro dos animais, muitos cachorros defuntos e uma imagem de cerâmica de São Lázaro estilhaçada.

     

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