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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Minha oração - Sergio Martins



Não vejo graça em liturgias, rezas decoradas, repetições sem vida que silenciam a espontaneidade da voz da alma, barganhas em troca da salvação, infinitos sacrifícios que deslegitimam a Graça, exorcismos, vidências, histerias que violentam o silêncio divino... A razão pela qual fugi da religião foi apenas uma: senti saudade de ver - o que é espiritual. Isso mesmo, renunciei a religião e apeguei-me à espiritualidade - para ver melhor; foi a Cecília Meireles quem me ensinou:
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
Na Gramática, oração também pode ser ação, para a teologia, é uma ligação/conversa entre humanos e Deus, em minha concepção empírica, é simplesmente ver. Daí, minha oração só pode existir através da transparência poética; e poesia é abrir os olhos para ver, ou seja, é o modo mais cristalino que tenho de pensar a vida...
Tudo o que eu via na infância de divino maravilhoso era mediante o olhar poético, isso porque, a criança não está interessada em fechar seus olhos, e sim, os quer abertos para degustar toda a beleza divina - ora, é da beleza que vivem os poetas... Por isso, às 18h, quando tine o sino da igreja, abro meus olhos para orar: vejo o céu metamórfico e metafórico a brincar com meus olhos, trazendo o encantamento da infância, e logo percebo imagens animadas de nuvens, a cigarra louva, o sabiá permanece estático no alto do poste, como fosse eu mesmo; absorto e bobo diante do mágico crepúsculo, perplexo com a chegada da noite e com os passarinhos, esses anjos eufóricos dançando mais uma valsa veraneia...
Em todo cair da tarde há um “cair em si" que me induz à ascensão. Nesse instante divino e maravilhoso, não sei quantos anos tenho, mas sei que estou livre de não ser eu mesmo, adulterado pelo adultismo... Lembrei-me da música Divino maravilhoso a me encorajar:
Quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Tudo é divino maravilhoso
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte...
No mito do Gênesis, narra-se que Deus conversava com Adão e Eva no crepúsculo vespertino. O mesmo acontece comigo, pois aprecio no entardecer toda a beleza divina, como as sonatas calmantes de Bach. Assim, estou em comunhão apenas por ter meus olhos abertos para o que é essencial; de maneira que sinto-me como a lira de Orfeu ou a harpa de Davi: cântico prazeroso a Deus, capaz de serenar as discórdias e sensibilizar os filhos da guerra perdidos nesse pós-Éden... Não costumo fazer pedidos a Deus, por isso, desde o dia primeiro de janeiro tenho feito a seguinte promessa a mim mesmo: ver melhor. Meu desejo a mim mesmo é que eu jamais deixe de ser esta criança boba e calma diante das tempestades, que propague paz e luz, inspire alegria em meu sorriso e minhas palavras, como um Allegro de D. Scarlatti (após a triste sinfonia) que acabei de ouvir/sentir...
Para mim, toda travessia da tarde à noite é uma epifania; e hoje, após minha contemplação, adormeci, já sob o lençol da noite e guiado pelo Cântico IV – Adormece o teu corpo, de Cecília Meireles:
Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Queres ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?



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