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quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Dos prazeres - da infância





Na infância eu jogava bola de gude com minha galera no quintal da igrejinha. Às dezoito horas tinia o sino. Desajuizados e esquecidos do tempo-espaço, sequer notávamos o momento de ir embora. Avessos à lógica do mundo cristão, ao cair da tarde estávamos no ápice da farra. Mas aquela também era a hora de o sacristão dar o “rapa” em nossas bolinhas de gude. Ali aprendi algumas dialéticas da religião como regras de aplicabilidade pessoal:
• Objetos de prazer (nossos sagrados brinquedos) são sinônimos de pecado;
• O lugar do exercício da comunhão (a igreja) não é propício às carências e deleites infantis; 
• O que é sacro (nesse caso, o sacristão) é sempre chato;
• A religião é a tentativa (fracassada) de dar sentido à minha vida (pois está longe da jurisdição do prazer). 
Durante algum tempo segui a educação religiosa de minha cultura familiar, mas o devir religioso tornava-se pesaroso e angustiante, entrar na igreja, para este amante do prazer, sempre foi como “passar um camelo por um fio de agulha”. 
Ouvindo os conselhos do sacristão, tentei ser “bom moço” e passei a frequentar a igreja. Na igreja, não quis saber dos adultos e seus emocionais turbulentos, envolvi-me com as crianças. O sacristão já me via com bons olhos e tratava-me bem, sorria até, vez outra, como quem ri satisfeito do lamento triste de um pássaro na gaiola, mas pertencer à tal entidade, punha-me à semelhança das funestas velas do altar, destinadas à morte vã e insensata, aquelas velas que apagavam a poética em mim, misturadas às flores mortas do altar - frente aos adultos com suas aparências sérias, pessoas respeitadas e inquestionáveis como aqueles altares sombrios que vigiam os corpos em seus velórios...
Meu envolvimento com as crianças da igreja descatequizou-me, passei a ser um anjo rebelde ensinando pensamentos libertários para elas, e por ser uma ameaça à ordem e ao progresso eclesiástico, deveria ser excluído da comunhão, pois ali, no lugar de seriedade, a poesia livre e feliz não podia ter asas para voar...
Conta-se, no mito poético cristão que, enjoado da companhia chata dos que desaprenderam as delícias do prazer, Deus veio ao reino dos mortais no intuito de encontrar a melhor forma de apresentar-se aos humanos, e assim, ao encarnar-se numa criança, Ele afirmou que ninguém poderia entrar no reino dos céus caso não se tornasse uma criança. Acredito nisso. Julgo-me um homem de fé. Hoje mesmo senti-me em comunhão com Ele ao jogar bola de gude... Estou no paraíso sempre que volto aos prazeres - da infância...

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