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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Do fugidio pássaro - Sergio Martins



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Distante volita o Uirapuru, arremete impossíveis dimensões a quem aspira sua liberdade.

Por um breve instante o vi de perto. Desde então, a chama cresce, dói e arde; matando os voos que jamais alçarei.

Quem o vê é engaiolado e quem o engaiola está sob feitiço ruim, minguando em desgraça.

Só quem o ama entende os prazeres de um voo divino,pois quando se voa acima das torres, nenhum voo é o mesmo... A essa dimensão estão todos que ouviram sua flauta encantada e o amaram.

Assim, o fugidio pássaro cria outros pássaros, os quais, voam alto, levando em suas asas outros pássaros oníricos. O alado feiticeiro libertou meus desejos sedentos pelo deserto, quando a imensidão era coisa alguma e a solidão se traduzia na fuga de minhas asas.

Do pássaro não tenho pena, pois tem de mim todas as penas,de modo que suas penas são suas penalidades e bençãos. Todo Uirapuru é uma astronômica gaiola: qualquer infeliz trocaria uns instantes de felicidade antes de morrer em suas asas a se engaiolar num entediante paraíso.



sábado, 19 de maio de 2018

O amigo-oculto - Sergio Martins


                                                  

 Era quase Ano Novo. 
 A comunidade Pé Rapado estava sob efeito tranquilizante: aos festejos, abandonavam-se as tristezas em copos descartáveis com bebidas baratas. No alto do morro, ostentando a contradição ao espaço, chegavam os convidados da Zona Sul em carros de luxo, joias e roupas de grife. Dizia-se que vinham para o banquete de amigo-oculto.
Contagem regressiva.
Rufaram os tambores: gritaram os morteiros, pediam atenção para o momento esperado as granadas de luz e som.
       À meia-noite as bombas estouraram – o céu era a imensa tela do cinema, cujos expectadores lançavam milhares de pipocas – o pipocar fogueteiro arremessava incríveis linguagens acústicas aos violentados ouvidos. Os fogos estalavam e luziam como pétalas no vendaval, misturavam-se aos estampidos de variados calibres – aquela iluminação pintava o ar da favela de celebração, apavorava os animais, aborrecia o silêncio sagrado dos melancólicos. O céu se transformou numa eufórica máquina fotográfica reproduzindo flashes coloridos pelos becos. Quando os rojões zuniram e as malvinas cantaram em rouquidão juntos às salvas de tiro, formou-se uma completa filarmônica, cujos graves e agudos entoaram com mestria uma sinfonia de percussão.
       Surgia entre os plebeus da corte e os nobres convidados (todos com ouvidos e olhos sofridos pelas luzes e barulhos) a novidade: o amigo-oculto. Distribuía bebidas, dinheiro, eletrodomésticos, brinquedos e comida, apregoava a virada, a revanche, as boas-novas: a queda do inimigo do reino - morto o antigo dono da comunidade, findava-se a ditadura.
- Vida longa ao rei socialista!
    Saudou um ilustre fidalgo, exibindo o Saint James 12 anos.
- Essa parada mermo, meu cumpádi!!!
   Exclamou um plebeu; desafinando a harmonia do concerto, levando à boca o mel com catuaba.
- Tudo nosso, parceiro!
Fazendo caretas e um tanto nervoso, tentou consertar a gafe um bobo da corte, sem entender do que tanto riam. É que fora os trejeitos elétricos e desengonçados, tinha todo o nariz sujo de poeira branca.
                                      





sexta-feira, 18 de maio de 2018

São Lázaro - Sergio Martins


                                        




              
Na favela de Manguinhos, em meio a um acampamento de cracudos, morava Lázaro, numa casinha de cachorro.
- Seu  Lázaro, os ómi, tá na área!
Assim avisavam os zumbis do craque quando os milicos perturbavam a área de lazer dos viciados.
- Bando de cães, esses vermes militares! Gritava o velho Lázaro, adentrando seu habitat canino.
Os Pm’s destruíam as barracas de camping do parque de diversão dos drogados, mas nem sempre, a morada de Lázaro, isso porque, quando o mendigo ali estava, seus muitos cachorros garantiam sua segurança. Eram vira-latas famintos que se acalmavam com o aroma da maconha e se encolerizavam com a presença de militares. Um jovem soldado, querendo mostrar serviço para o superior, pedia permissão para atirar contra o acampamento e matar todos, mas o sargento, devoto de São Lázaro, gostava de cães e por isso protegia aqueles animais abandonados pelo Estado.
Seu Lázaro vivia por aqui e ali mendigando o que comer, pedindo moedas aos transeuntes. O velho mancava, sustentado por muletas. De sua cabeça aos pés, abriam-se as feridas de quando, embriagado de cachaça, caía pelos becos − os cães, seus fiéis companheiros, lambiam-lhe as chagas.
Todos os dias, o Senhor dos cães peregrinava em busca de alimento para si e para os seus canídeos devotos que se enfileiravam atrás do seu santo numa procissão bagunçada, ladravam na direção de ciclista, passantes e cavalos, perturbando a vizinhança e o trânsito de automóveis; todos malcheirosos e magrelos, uns com a pele muito prejudicada, outros doentes e mancos, espalhavam no ar o excesso de pelo e pulga.
Às vezes, cansado das andanças por esmola, o lazarento parava num canto qualquer e dormia. Caso alguém tentasse contra ele, a matilha o resguardava, se um moleque lançava pedra num cachorro, o caduco agredia com sua muleta, caso um automóvel atropelasse um cão, o homem cuidava de suas feridas. Assim se blindavam e trocavam afetos: protetores e protegidos estavam sempre juntos no partir do pão, na santa ceia diária, na comunhão e fidelidade em todos os momentos. Nos dias frios, Lázaro se enrolava com os cachorros num manto roxo e noutro marrom, reunidos, aqueciam-se, comiam no mesmo prato do homem. Após a refeição, cada um tomava uns bons goles de cachaça, os bichos limpavam a língua na cara no seu dono em agradecimento, em seguida, todos se coçavam, trocavam carrapatos e carícias.
- Seu  Lázaro, os ómi, tá na área!
- Cães do Estado! Cambada de lixo!
Quase todas as noites, o tiroteio turbava o sono dos moradores da favela. O sargento queria prender o chefe da boca de fumo de qualquer jeito. Daí a repetição da cena: o tiroteio, o soldado jovem querendo matar, o sargento protegendo o acampamento, o protesto de Lázaro, os cães correndo em direção à polícia, expulsando os invasores ­­­­­­˗ ­­a segurança pública que tanto era execrada por ali.
O jovem PM, aproveitando as férias do sargento e inconformado com a sujeira social, decidiu limpar o lixão da favela. Juntou rapidamente um grupo de limpeza e rumou ao local. O tiroteio durou a noite inteira.
O grupo se apossou de algumas armas e drogas, mas não obteve sucesso quanto à apreensão do chefe do tráfico, e isso, além de ferir o orgulho dos homens da lei, provocou-lhes imensa fúria. O jovem prodígio militar admirava um fuzil AK-47 sob um tesão que o determinava a ir mais fundo na loucura. Aquele brinquedo sofisticado dos deuses da guerra, o enfeitiçava, e logo que o rapaz abriu um sorriso nervoso, sem hesitar, apontou a arma em direção ao acampamento dos cracudos e brincou de ser Deus.
No dia seguinte o sargento lamentava a nota da imprensa que trazia a morte de algumas pessoas em situação de rua por conta de um tiroteio entre traficantes e policiais. A ação criminosa, segundo o noticiário, seria por parte dos traficantes, pois os projéteis atirados contra o acampamento vinham de uma arma de fabricação russa, e que os viciados, protestando a incursão militar, bloquearam as Avenida Pastor Martin Luther King e Dom Hélder Câmara, atearam fogo em toda espécie de lixo, incineraram muitos ônibus e houve muitos feridos, arrastões, falsa blitz e assaltos a motoristas.

Próximo à casinha de cachorro peneirada de bala e salpicada de sangue via-se um folheto da oração do padroeiro dos animais, muitos cachorros defuntos e uma imagem de cerâmica de São Lázaro estilhaçada.

     

sexta-feira, 30 de março de 2018

Páscoa - Sergio Martins

                 


Próximo à Igreja Verdadeira de Jesus Cristo, apareceu Zé da Cana, um alcoólatra que mendigava pelas ruas da Tijuca. Ele gostava de ficar à porta do templo pedindo moedas e restos quaisquer ao pipoqueiro; punha-se até mesmo a ouvir o sermão: 
- Jesus liberta da cachaça, do vício, da miséria!
- Amém! Confirmava o pedinte. 
A Tijuca sempre foi um tipo de Zona Sul deslocada da praia e não se situava bem na chamada Zona Norte, tamanha era sua importância histórica e representatividade dos bons costumes, portanto, no bairro de família, o bêbado não podia transitar seus maus hábitos sociais; por isso, vez por outra, a fim de que os fiéis não fossem incomodados pelo endemoniado, ao término do culto, os obreiros da igreja o expulsavam. O pastor, não querendo sujeira na porta de sua igreja, acionava a polícia. 
Nada adiantava: mesmo cheio de hematomas causados pela educação disciplinar da polícia, todo domingo Zé da Cana aparecia para ouvir o sermão do pastor enquanto pedia esmola e comia restos de pipocas. Até vir novamente a expulsão do demônio pelos obreiros e a ordem promovida pela segurança pública.
Na manhã da Sexta-Feira da Paixão de Cristo, Zé da Cana já estava bêbado. Ao longe, vinha tropeçando pela Via-Crúcis em direção ao santuário, o seu Calvário cotidiano. Vestia um short jeans curto, muito sujo e fedorento. O sol carrasco chicoteava suas costas foscas, a camada dura de sujeira sobre a pele negra - feito um mármore cintilante de poeira. Os cabelos longos e imundos colavam-se, formando faixas acinzentadas, como uns farrapos de tapete.
Levava sobre as costas cansadas e curvadas grandes sacolas de badulaques, dentro das quais, várias outras bolsas, numa bagunça de maltrapilhos. Uma bolsa rasgava e os trapos se espalhavam pelo chão. 
Os homens de bem o xingavam, os moleques cuspiam e lançavam pedras, as senhoras o excomungavam, as crianças choravam, corriam assustadas da aberração. Um soldado tentou conter a situação e deu umas pancadas no bebum que impedia o fluxo de pessoas. O cachaceiro desabou em cima do paralelepípedo. O sangue descia pela cabeça rachada, abriram as feridas do corpo purulento. 
À tontura de embriaguez, girava-se o céu. Achou uma coroa de ramos no lixo e a pôs na cabeça para amenizar o ardor solar. Os pés inchados sob os joelhos inflamados cambaleavam, mas prosseguiam. O objeto inútil e podre incendiava em febre, no entanto, seguia, calado, como uma ovelha rumo ao matadouro. 
Buscando sombra, sentou-se abaixo de uma marquise, debruçado à cruz pesada de bolsas. A fome mordia o estômago, fraquejando sua pressão arterial. Avistou uma lixeira. Disputou com um cachorro alguns pães endurecidos. Uma enorme mosca azul barulhava dentro do saco plástico da mortadela. Os transeuntes deram-lhe uma surra antes que a polícia chegasse para acalmar a situação. Os guardas o esbofetearam e chicotearam-no com um cinto de couro achado entre as coisas do molambo. 
A pele aguardente queimava, tremia ao efeito da respiração ansiosa. Ensanguentado e às apalpadelas, mergulhou no chafariz da praça. Após o último gole de cachaça, sentiu sede. Pediu água no bar. O dono do comércio, irritado, porque aquela figura tenebrosa espantava os clientes, deu-lhe um copo de vinagre. 
Por fim, chegou à calçada da igreja. 
A noite descansou. O sábado amanheceu e despertou a atenção da nobre vizinhança: Zé da Cana permanecia deitado e assim ficou até a noite. A criatura desprezível consistia num impasse: haveria culto pela manhã, por isso deveria sair dali. 
Da urina, o cheiro de álcool; a amônia, do suor. O resto de gente era um bafo etílico que mal cheirava toda a rua, um odor agressivo do inferno que perturbava a sagrada comunhão dos cristãos.  
A pedido do pastor veio a polícia, trazendo a ordem.  O miserável recebeu muitas cassetadas, contudo, permaneceu na mesma posição: deitado com as mãos abertas e feridas, os pés juntos, formando um símbolo corporal de cruz. A coroa de ramos presa à cabeça.
O policial anunciou o laudo: estava morto. 
Aproximou-se um piedoso que dava alimentos e esmolas ao mendigo:
- Eu me sentia purificado com seus sermões, gostava quando ele me dizia “Bem-aventurados os que têm fome e sede justiça...”
Os amigos em situação de rua e fiéis devotos do finado relatavam o que sentiam:
- “Ele levou sobre si nossas dores, nossas ofensas...” Ele nos salvava todos os dias com palavras de fé e esperança. Todo dia era santo, ele nos juntava para a Santa Ceia em que bebíamos cachaça e comíamos os pães trazidos por ele. Os Policiais o perseguiam e maltratavam para não ter o esforço de surrar a todos nós, miseráveis pedintes; agora estamos todos com medo e desamparados, pois o Zé da Cana era o homem que sofria por nós.
Discorrendo em suntuosa oratória, um comunista intelectual, eloquente e engajado nos Direitos Humanos, deu bom testemunho do santo:
- Zé da Cana é a metonímia desta sociedade decadente! Nele eu vejo uma espécie de bode expiatório, o que parecia emitir, através de sua ébria e louca existência, o atestado de sanidade tijucana. O corcunda não levava apenas bolsas de maltrapilhos, mas sobretudo a sua cruz: o peso de um mundo tijuco, as mazelas de um bairro abjeto. De modo que sua vida e morte representam a lavagem dessa gente de alma tijucal, já que sua maldição transformava esse bairro em bênção; mas agora, sem a luz do santo que vivia em situação de rua, o bairro retorna à Idade das Trevas, a sua mais pútrida natureza de tijuco. 
Misturado ao chão, o corpo que circulava invisível e cambaleante pelas ruas cínicas da Tijuca, finalmente, estava visível e vencido. Aquele estilhaçado e indigente, embora conhecido pelos botequins, não possuía sequer identidade – dizia-se dele: é apenas um negro favelado que logo sairá do chão para a terra dos defuntos. Ele, porém, demorou a sair dali. O corpo insistia permanecer colado ao chão. 
Ao raiar do dia, a calçada estava limpa para receber os fiéis, e o pastor poderia iniciar o culto em paz. A Tijuca não teria mais o seu principal Judas para o malho, por outro lado, de uma vez por todas, o miserável deixaria de atormentar as ruas do respeitável bairro. 
Na Igreja Verdadeira de Jesus Cristo haveria a grande festa da ressurreição.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Dos olhos que são poesia - Sergio Martins





Em meio à guerra, o ato de maior subversão é o olhar poético. São dele, a insaciabilidade pela beleza, o desejo pelo Éden, o desespero pelo prazer, a ânsia pela vida sonhada... Ele é o modo mais cristalino de pensar a vida, pois nele não há o embaço da realidade...

Meus olhos são subversivos e, sobretudo, espirituais – direcionados às flores do meu quintal, velas acesas no apagão existencial, pois devotam luzes de alegria ao altar-mor... Nesse instante, estou novamente no jardim – da infância – em comunhão com o sagrado. Penso que Deus seja, como pensou Fernando Pessoa, uma criança que brinca no jardim. Jesus pensava semelhantemente: "quem não se tornar como uma criança jamais verá o Reino de Deus".

No crepúsculo matinal, vejo que as florezinhas estão molhadas, e lembro-me de Vinícius de Moraes: “A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor”. A cada dia o cuidado divino nos alcança na proporção que precisamos, daí, não haver a necessidade da inquietação pelo dia de amanhã – basta a cada dia o seu mal...

Às 18 horas, o sino da igreja me aconselha: Tempus Fugit! Carpe Diem! Eu sorrio, convicto de ter colhido com os olhos todo o presente do meu dia...

Ao anoitecer (regarei as flores – a arte do cuidado dá sentido à vida), essa rotina dos olhos poéticos me traz a novidade: estou pronto para um novo dia. Apesar da guerra, hei de chamá-lo de presente – feito criança diante de um mundo a ser descoberto...


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Olhos de comer - por Sergio Martins







Com o avanço da idade tendemos a ver tudo em sua mais chata repetição. Isso é mais que normal. O que chateia o mundo são os olhos poéticos que contradizem a lógica, pondo em tudo no mundo uma animação e, como adoram ao sagrado, acendem pequenas luzes para a Luz Maior – como diria T.S. Elliot.
No mundo-mutante que gira numa velocidade incrível, não o acompanharmos seria trágico: as palmeiras resistem aos ventos, ao passo que os inflexíveis, quebram-se.
Outro dia vi uma borboleta, coisa rara por aqui (o progresso acabou com as angelicais criaturas).
Perguntei aos que estavam ao meu lado se eles também viram a teofania; mas para minha surpresa, eles só entendem por teofania as dádivas dos recursos financeiros – obtidas mediante barganhas com os deuses...
Noutra ocasião, meus olhos se alimentaram de um arco-íris, a chuva ainda musicava sobre um sorriso que eu degustava, à noite seria a grande lua, outros sorrisos e danças... Quando subi a montanha e fiz rapel, entendi a filosofia: “só depois de deixarmos a cidade é que veremos a que altura estão as torres.
Acima das casas”. A beleza vista do topo da montanha eliminou o medo de altura; ali compreendi a máxima teológica: “o verdadeiro amor lança fora todo o medo”.
Agora, são as violetas e as pequenas rosas do meu quintal que me põem na perdição dos olhos. O que me faz apreciá-las a cada manhã? Qual a razão de eu me apaixonar todos os dias pela mesma imagem? Ah! Esses olhos de comer poesia...
A observação e a experimentação não são meios exclusivos dos poetas, para a obtenção de resultados lógicos, a ciência e a teologia se valem dos mesmos recursos: “Olhai os lírios dos campos...” “Olhai as aves...” “Provai e vede que o Senhor é bom...”
O certo é que não há mais solução para os olhos poéticos, se estou cabisbaixo de tristeza, vejo o cuidado divino nos lírios, se ergo a cabeça, as aves me ensinam que mesmo sem plantar, têm tudo o que necessitam.
Olhar, olhar, olhar... Experimentar, alimentar-se... Abstrair-se da poluição visual e das miragens produzidas pelo deserto humano-existencial, captar o óbvio: os olhos necessitam se alimentar - da comida divina que nunca falta em detrimento da abundância dos males... As vantagens de caminhar neste contrassenso humano é se alinhar ao equilíbrio do universo. Daí a paz em meio à guerra e não ser dependente dos milagres do capitalismo para a aquisição de tudo o que realmente é essencial à vida.
Os olhos de comer têm pressa; e a vida está acontecendo no tempo-presente-divino...

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Velho Oeste - Sergio Martins






Minha oração me permite abrir os olhos para contemplar a beleza sagrada. Esta é a porção de luz diária que ponho no altar: o meu jardim interior dialoga com a realidade que necessita ser (re/des) construída.

Por isso, neste Velho Oeste, onde todos os dias ouve-se os tambores de Caos, eu, minúsculo capim num canto qualquer, sobrevivente e agradecido, danço com as flores: criança brincando entre os destroços pós-guerra, desdenhosa do mal que, em vão, insta prevalecer - na pequena terra que ainda respira um jardim.







domingo, 7 de janeiro de 2018

Para entender a vontade-necessidade de um beijo - Sergio Martins







Você gostou dos cachos amarelos da Acácia (enquanto eu recitava Vinícius de Moraes),distraí-me em seus olhos, no teatro, antes do beijo regado à vagarosa chuva: ficamos acima da cidade assistindo as luzes que dormiam sob a imensa lua.                                   
Beijar-te é um portal que me leva a encontrar o perdido eu. Dos seus lábios tenho minha eufórica juventude, a idealização romântica apagando os ressentimentos de guerra, transpondo-me à redenção divina...
O verdadeiro beijo é a saciedade da ânsia desesperada pela vida.
Não ter seu beijo é o meu medo inconsciente das clássicas tragédias: experimentar nos deleites de outros beijos a prematura e lenta morte.


sábado, 4 de novembro de 2017

Dos altares - Sergio Martins

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O túmulo físico também é a tradução de nosso altar interior onde reverenciamos tudo o que amamos - flores para os que se vão... Isto me lembra um princípio da psicologia: "só cuidamos devida e demasiadamente daquilo que realmente amamos" e da máxima teológica: "onde estiver o teu coração, aí estará o teu tesouro" - meu coração é espiritual porque está na beleza sagrada, na poética silente que responde à histeria pós-moderna... Guardar o que se ama é pôr em túmulo - os Faraós sabiam muito bem disso. É como a fotografia, isto é, a tentativa de eternizar o momento - belo. O túmulo-altar é o lar no qual desejamos viver eternamente com as coisas e as pessoas amadas...
Estou no passado com as coisas e as pessoas que amo ao sentir tão somente a criança que ainda sou – é quando aqueles espíritos bons e eufóricos me convidam a brincar -; mas a tentativa de ressuscitar tais espíritos também é magia perigosa, é brincar de ser Deus...


domingo, 29 de outubro de 2017

Dos corpos que não caem - Sergio Martins








Naquela terra, já em outubro caíam árvores e corpos...
Os ventos que secavam as lágrimas também exauriam sonhos - ondas enfurecidas que feriam e ignoravam a juventude, mas não a levavam consigo; e assim a moça permanecia... Era ela a prova da força cruel do tempo, um cais arrebentado defronte ao seu destino e a partida do amante navio...

Do antigo ipê amarelo, os ventos repaginavam capítulos perdidos, as saudades dos encontros e confissões – chegava-se a arte tardia e primaveril; as flores espiavam as horas friorentas da manhã e a música inquieta que vinha do sopro, dos ares de outrora, tremulava as penas de um pardal, o qual, desolado, lamuriava a solidão e a perda do seu ninho...

sábado, 28 de outubro de 2017

Casa Vazia - Sergio Martins









A saudade é agora – espaçando-se pela casa vazia.
É apenas meia-noite e a soma de minhas noites já é meia-vida.
O final do dia é sempre mais um começo – a reclamação de toda a vida que está por vir; pois meus instantes são os ensaios desleixados dos deuses.
Eu tenho muitas flores embora nenhuma me possua; e sinto que esta liberdade é semelhante aos dias derramados em minhas mãos nas tentativas frustradas de segurá-los – é que pertencer a nada é quase uma identidade alienígena...
Se um sonho me aborda, logo se torna breve no tempo que me desperta para outras verdades...
A saudade talvez não seja mais da vida intrauterina, mas da morte que sempre se esconde, ainda que ela (minha bela dona!), espreite e deguste-me com seus românticos olhos.
A saudade... Talvez seja de mim mesmo. Sinto isto quando a casa, no tempo-espaço, está cheia...
A saudade é agora – espaçando-se pela casa vazia.

domingo, 8 de outubro de 2017

Flores Primaveris - Sergio Martins


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A liberdade (de seguir unicamente o caminho trilhado por mim) cala os desafetos e aquieta a amada e tão esperada solidão: um fogo brando aquecendo toda a vida e a defendendo do pavor – o atribulado mundo. 
 As horas do sonho me entusiasmam – pois discursam artes futuristas - ao tempo que descrevem amores nas folhas opacas despedidas pelo chão – embora sejam primaveris. 
Se à noite tenho a única e inebriante vida (a qual, por ser mágica, acende o vagalume), nos dias de luz deságuo irrequietas chuvas – floreio garoas sorridentes, riso-sarcasmo e tímido alargando-se no instante em que meus olhos se apequenam; pois é fúnebre todo o desmaio da tarde no declínio dos sonhos, o sono à luz de pianos e violinos, toda ilusão que afaga a realidade desbotada e define as sombras agourentas do caminho de quem o aprecia...
Não, não me digas jamais a verdade.
Quero a ilusão pura e intensa para o meu transbordamento - eu transo com a fantasia; pois é dela o orgasmo vital dos pseudopoetas: ser sempre eu mesmo dentro e fora de mim.


quarta-feira, 24 de maio de 2017

Gatunos - Sergio Martins



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O gato dorme no alto da árvore...
Passado meio-dia,
à poeira colorida que sobe ao céu,
ao barulho de carros mal-educados
e à feiura dos comportamentos...
O gato dormindo no alto da árvore...
Ignora fumaças de cigarro,
o sol fustigante e a irritação,
a menina me pergunta se animal tem alma,
filosofando sobre irracionais felizes...
O gato dorme no alto da árvore...
Acima dos sapatos em correria,
dos suados preocupados,
lábios sequiosos e mãos aflitas por capital.
O gato dorme no alto da árvore...
Bem alto, inatingivelmente alto!!!
Abaixo, tudo. Tudo rebaixado:
a cidade veloz corre na autoestrada-vagarosa-autoestima...
O gato dorme no alto da árvore...
Invejando pedintes, apaixonados e frustrados olhares:
gatunos espíritos sem galho ou árvores na vida-rua-vazia e noturna. 

domingo, 21 de maio de 2017

Bilhete premiado - Sergio Martins








Eu tenho um bilhete premiado. Estou louca de empolgação e quero apresentá-lo às minhas amigas.


Enquanto deixei apenas a casa desarrumada, o Antigo levou minha carteira com dinheiro e documentos – nela havia um poema adocicado que eu lhe daria de presente.

Agora eu tenho um Novo - bilhete premiado. E embora ele só retorne do futebol muito tarde, sei que ganhei a sorte grande para toda vida, um companheiro para meus altos e baixos de cortisol e adrenalina, de metanfetaminas, aguardentes, café e cigarros na insônia.

À tarde, quando acordamos sob o crepúsculo de dopamina, ele tem olhar pedinte - miserável e travesso! Eu não sei negar-lhe as migalhas: dou-lhe um beijo com gosto de rivotril... 
Eu tenho um bilhete premiado. Mas tenho pena de nós e acho que ele sente o mesmo, pois me disse que também sou o seu bilhete premiado. 

sábado, 20 de maio de 2017

1 cigarro - Sergio Martins









Para esta vida enorme e veloz, morte vagarosa – fantasia...
Naquele frio, percebi como são elegantes os clarões azulados dos lenços enfumaçados que sobem de sua boca... 
Minha fumaça entrelaçou-se à sua, como se nossa solidão se abraçasse; tornando-se uma só alegria...
Que maravilha essa terra: cinzeiro e luzeiro nosso!
O céu afaga, fuma monóxidos e tristezas, mas também faz cinzas do que não é poesia...
Às caretas de um tempo que apenas fecha-se aos caretas fúteis e carros acelerados (quais guimbas de toda beleza e sentido), mais um cigarro...
1 cigarro...
E assim, do absurdo e do divino fizemos rima:
relaxa, acenda e traga sua dor,
enquanto eu queimo outro amor – 
para esta vida enorme e veloz, morte vagarosa – fantasia...
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