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terça-feira, 28 de abril de 2020

Origem e destino - Sergio Martins








Origem e destino...

A terra é o homem: tudo o que ambos (se) plantaram.

Origem e destino...

O homem é tudo o que permanece: após a cansativa travessia, o descanso em paz de sua terra.

Origem e destino...

terça-feira, 14 de abril de 2020

Tema para triste canção



Quando resolvemos caminhar juntos, a estrada era escuridão, mas ainda havia luz, bem lá no alto, muito à frente...
- Estrela minha, alma querida!
Havia um buraco, um poço oco e frio...
Eu não me lembro bem como tropeçamos, pois nós apenas seguíamos nosso caminho
 - nossa sombra, aquela sombra densa que pesava, nos guiava...
Ainda olho para aquela luz, sozinho, num errante caminhar...
Agora sei, meu colo materno, quando morremos, nos tornamos apenas o que somos: espíritos...
Eu voltei ao teu colo, minha Estrela-mãe, aqui onde os espíritos colorem esses dias cinzentos...

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Realejo - Sergio Martins




A realeza é o que sempre foi: a beleza do diabo.
Decoração e estilo sem funcionalidades, estética-démodé, concepções e nascimentos em ruínas, esquisitices de conceito e estrutura...
É bonita a realeza? A quem tenta convencer o capitalismo com suas engenharias suntuosas, virais e mortíferas? São magníficas, sombrias e vazias as construções do seu antigo fracasso que aponta a iminente decadência neste adoentado presente, como a celebração funesta da Páscoa dos que esperam o prometido paraíso da meritocracia.

Comamos chocolate! Bebamos e festejemos, pois a nobreza é o novo vírus, a rainha é a louca cruel dos seus reis em xeque-mate! As princesas são as capitais doentes e fúteis, suas drogas são doces, mas enjoativas, e os seus dependentes assistem as danças à sinfonia de suas mortes, após serem seduzidos e aprisionados.

A riqueza genuína ainda rima com a beleza:
O oprimido é sempre maior que o opressor,
pois é dele a alma real, a honra e a pureza;
de suas noites, o sono tranquilo é o senhor.

A páscoa-paixão dos plebeus é a comunhão em boemias:
aqui embaixo, todos os dias há intensos amores e alegrias
do peixe ao pão, dos vinhos aos bons desejos,
reinam a gratidão e a amizade nos pobres vilarejos,
em todos os realengos ouve-se a euforia dos realejos,
o populacho, embriagado de alegria, canta o sábio ditado:
"É melhor a feiura em paz que a beleza do diabo!”

terça-feira, 7 de abril de 2020

A Luz do amanhã II - Sergio Martins





Horas-noites, dores que anulam as vozes... silêncio rasgado ao pêndulo do relógio: solidão refinada é o privilégio que só os livres podem gozar, pois mesmo rodeados de pessoas, transcendental e singularmente estão à companhia de si mesmo.

À corda aflita do relógio, acorda o dia em paz. Abre-se a mesma flor: o prazer de florir os dias não acordados...

Quando a celeste lâmpada desabrocha (a flor das minhas noites), sinto não pertencer aos mundos que pouco conheço e sorrio apenas por estar sob o imprevisível - o que me espera é só que tenho: o presente faminto de novas fomes... É que neste novo mundo em confinamentos plurais, a cada dia estou sem endereço, ainda que endereçado numa via desconhecida, abrigado somente pela enigmática Luz do amanhã.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

De dentro para dentro - Sergio Martins

Chakras: o que são e como funcionam os 7 centros de energia





No mundo onde ser bom é estar em penoso retrocesso e cuja rotina é a aparente decadência do bem, o presente parece não traduzir novidade satisfatória, sendo apenas uma trágica repetição. A maioria das pessoas é como barcos atracados que jamais saíram do cais, por isso, resiliência é mergulhar para dentro de si sem se perder do mar...
Sanidade é seguir à frente...
Abra mão das aparências e das batalhas vãs, presenteie a ti mesmo com o que tens de melhor. Até as verdades absolutas se equivocam, mas o mal é fracassado por essência, pois desconhece o sabor das alegrias que provêm da bondade, da generosidade, do perdão, das flores colhidas após a angustiante semeadura... 
Pare de lamentar-se pelas escolhas erradas, pois sua mente não é mesma de outrora... Somente abrindo mão das mágoas que nasceram da incompreensão, ingratidão, inveja, do ódio e de outros tóxicos, que conseguimos receber e valorizar as pessoas e os sentimentos que realmente valem a pena.  Pessoas amadas partem, outras vêm... A autoestima inclui a consciência que nenhum relacionamento sobrevive sem a troca justa de afeto, de resto, haverá apenas a inútil e desesperada tentativa de um convívio infeliz consigo e com o próximo, semelhante às artificiais publicações da vida íntima, todas com sorrisos falsos e mentirosas companhias, como se a moda fosse a violência contra a felicidade própria e alheia num ringue de competitividade de quem é mais fútil, triste e piegas...
Sanidade é seguir à frente... 
Tenha orgulho de quem és, de suas construções e desconstruções... Possua um espírito possuído pela vida - sonhada, real\realizada... Que sua alma seja abrigo de pessoas e sentimentos leves, longe das relações utilitárias e sombrias. 
A solidão, o confinamento e a saudade nunca são trágicos quando não nos perdermos de nós mesmos, dos olhos pueris que enxergam beleza, dos lábios que sorriem a poesia viva de cada amanhecer...
Sanidade é seguir à frente: devolva-te a ti mesmo. Traga tua alma à tua alma, retorne ao seu lar. 
Siga à frente - pelo caminho a nós designado: para dentro de nós mesmos...
Continue sendo apenas você e nunca a projeção de outrem. Bobagem é tentar ser os outros... Seja bom – para você mesmo, abra mão da autocomiseração e do orgulho de moldar os outros ao seu mundo, deixe a vida fluir de dentro: a humildade é honraria divina, a valorização da simplicidade é o gracejo, o enfeite, o riso de alegria produzido no cenário caótico, a paz e a liberdade são inegociáveis...
Sanidade é seguir à frente...

sábado, 28 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte V - Sergio Martins

Solidão já é tratada como epidemia no mundo e impacta até na ...



O mundo contemporâneo e suas formas de interatividade reafirmam que somos essa contradição: ninguém é uma ilha - no universo onde todo homem é uma ilha.
Distante da multidão, o mundo atual experimenta a nova solidão, a que é compartilhada-todos estamos unidos pela mesma solidão. Fugir disso é se prender numa dolorosa utopia, porque o confinamento nos permite refletir sobre o que realmente representa a liberdade do corpo e da alma... O caos revela os segredos escondidos e esquecidos pela distração: retornar aos afetos e aos prazeres da solidão, de modo que a busca de si no outro é um engano doentio e a dependência emocional é a violência contra o único caminho da paz interior, pois cada um tem suas próprias digitais, sua identidade e suas saídas...
Na solidão, entendemos melhor o inferno que são os outros - os que tentam matar a querida amiga solidão. É que a solidão representa vazio para muitos... Acho, dentre outras questões, que o pavor de estar em solidão é ausência de criatividade: “Se você não encontra o sentido das coisas é porque este não se encontra, se cria”. (Saint-Exupéry) Todo confinamento é crise se não tem criatividade, a novidade poética nos olhos que faz as manhãs serem novas e únicas... É claro que todo paraíso é entediante quando não há com quem compartilhá-lo, mas é a solidão que nos aproxima de nós mesmos e, distante de si, nenhum ser consegue se achar - bem no outro.
É óbvio que tenho saudade da vida sem quarentena, mas para mim, que vivo em recolhimento, a solidão é uma divindade indispensável à vida, portanto, como escreveu Nietzsche, também “Detesto quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia”; isso porque, todos os que os que repudiam a solidão sempre me ofereceram seus violentos vazios, de modo que parodio a música: Ter saudade até que é bom, é melhor que caminhar COM OS VAZIOS.
Quando a solidão não é doença e isolamento social não é apartheid, compreendemos, que a pior\real morte é experimentada em vida - em todo o tempo que desperdiçamos em ressentimentos e tristezas insanas e não desabrochamos o amor, perdendo-nos do caminho da paz. De resto, permaneço separado, embora junto na mesma solidão secular, pois “A natureza dos homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêm separados”. (Confúcio)
Retornando à contradição, eu preciso de outros sentidos, os que representam não-sentidos para o senso comum: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada”. (Clarice Lispector)

sexta-feira, 27 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte IV - Sergio Martins




Todo isolamento nos expõe ao espelho (monstros e ídolos), à possibilidade de (nos) aceitar e caminhar para dentro de nós mesmos\ autoconhecimento, mas precisamos ter cuidado, somos parte do que vemos do lado de fora, os monstros: “quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro”. (Friedrich Nietzsche)
Ora, todo monstro é criado pelo homem, pois o homem é o monstro-vírus-mor - o mal capitalista... O novo monstro não é o Covid-19, mas a antiga doença humana, o pecado capital (ismo) - a cultura do consumo que nos consome a alma é o monstro que criamos e que nos tornamos - de tanto olharmos para ele.

O Frankenstein contemporâneo é o egoísmo, o prazer pelo prazer sem filantropia, o utilitarismos e  a futilidade dos relacionamentos, a antiempatia, a vaidade de um viver vazio - o esforço pelo enquadramento na insossa existência que maquia o ódio e a banalização da vida...

O monstro também é revelador (políticos e religiosos se transparecem): o paraíso e o lugar ao sol oferecidos pelo capitalismo são fantasiosos, a sede pelo poder e o ter pelo ter é autodestruição... a vida é o bem maior - possuir sem ser possuído... Portanto, ignorar o monstro e suas verdades é a negação de si mesmo...

O isolamento social só é patológico quando não há a apreciação e a amizade pela solidão, o desconhecimento dos prazeres da solitude... Distantes da euforia e da aglomeração de pessoas, podemos refletir\ o reflexo do espelho, embora pensar, para muitos é doloroso (o silêncio é irritante quando ecoa a histeria da alma), todavia, é na introspecção que acontece o milagre, a oportunidade de encontrar a saída: ser si mesmo...
Ninguém é o mesmo após a experiência quase morte, sairemos dessa condição mais humanizados ou mais monstruosos... 

quinta-feira, 26 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte III - Sergio Martins

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Nessa fase cuja vida caminha fragilizada e a saúde do pobre é banalizada em prol do dinheiro e poder, vi um homem catando alimento das lixeiras e dividindo tudo o que achava com seus gatos. Ali, recordei de Manuel Bandeira e da certeza de quem é o bicho matador de tudo o que é bom e bem:
Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem. Pus-me a observar aquele homem durante muito tempo, notando nele o abismo que traduzia meu ser - "E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti”. (Friedrich Nietzsche) Sair à rua é como brincar de roleta russa e o isolamento é pique-esconde com o bicho malvado... Eu brigo neste pique-pega infernal: o bicho pega o homem que pega o bicho... O bicho está pegando!!!


segunda-feira, 23 de março de 2020

Ensaios antivirais - parte II - Sergio Martins







A sonolenta luz do poste pesa mais fosca, letalmente ofusca os olhos-transeuntes que persistem achar algum sentido na calmaria mórbida que sufoca o ar de um medo resignado: o mundo hoje apenas é pequenez claustrofóbica e fria.
Caminha em minha direção a música romântica e antiga, flutuando o cabelo ruivo da copa da bela amendoeira, como se todas as árvores perdoassem as violências humanas... Estático, o sabiá canta tristezas de solitudes para todo o vazio existencial - ao longe, o diálogo interrompido, o monólogo sem ouvinte, o casal se divide, distancia-se pela estrada-despedida, a saudade de lá já amarga as calçadas daqui.

O agouro entardece todo o dia, a pressa da noite é um grito violentando o tempo, uma ventania enlouquecendo o lirismo cosmopolita...
Livre dos alucinógenos, os passos errantes caem no pensamento lancinante, no limbo cotidiano, pois são racionais e vãos... Sem a fantasia e a mentira-catarse, não há cura-droga que os possa salvar das verdades destrutivas... Portanto, a Pneuma filosófica e a Pneumatologia teológica perturbam-se, espirram a impotência, cospem a poeira cósmica e o pó terráqueo (que é absolutamente tudo), caem na apneia da cidade em pneumonia...

- O rei está nu! Denunciam os plebeus.

O reino está exilado no reino que sempre foi exílio: a cidade ensimesmada, encimada de cristos-críticos, decência-decadência...

Tosse um velho capim, outonando num canto qualquer de calçada. A garganta da flor diminuta está sequiosa pelo fumo do tempo e enchem-se de fuligens seus pulmões, ao tempo que estou num resfolegar de algum sentido, semelhante ao semelhante que não pode respirar - sozinho no mundo insensato... Em poucos minutos, uma poça d’agua destruiria meu rosto - a imagem e semelhança da des-razão nesse ininterrupto não-lugar.

Ensaios antivirais - Parte I - Sergio Martins





Eu tenho tarefas por cumprir antes de partir... A vida sempre se apresentou como um papel ofício branco à espera de minhas letras, como se o meu lugar fosse hedonismo, isolamento, morte-vida, filantropia... Antes de partir, não poderei partir-me... Serei inteiro para mim mesmo, pois amo a doce voz que me diz: “conhece a ti mesmo”, “torna-te quem tu és..." Esse outono (queda de temperatura) é um chamado: “cair em si”, adentrar o caminho do ser-si-mesmo...
Antes de partir, ao menos, farei o melhor nesse pior e excepcional momento, que nos abre portas para estar próximos de nós, dos semelhantes e longe de toda energia ruim - dos amantes do caos.
Antes de fechar meus olhos definitivamente, terei a certeza de não ter existido pelo que é falecido ou que falece, pois vivi em prol da vida... Mais e melhor que na adolescência, estou aprendendo a morrer (apenas para o que é necessário), de modo que já não sei morrer (desta antecipação de pânico e medo) antes da morte, é que só sei morrer de/pela poesia, pelo prazer, pela dor-alegria - Graça divina dada aos oprimidos...
Tenho experimentado (sem egoísmo e com pesar) a convivência com a destruição sem permitir a destruição das minhas emoções, num degustar estranho dos prazeres essenciais, como bem me ensinou Robert Frost:
"Os bosques são adoráveis, escuros e profundos,
Mas eu tenho promessas a cumprir,
E milhas a trilhar antes de dormir”.
Ainda que atingidos pelas ruínas, sigamos reconstruindo-nos e ajudando na reconstrução de um mundo melhor, pois a vida é bela - apesar de...



quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Ontem - Sergio Martins




                                 

 


           A cada manhã, o dobro de ontem.  

  De teu ser, meu enigmático encantamento, 

         provém além do que posso ser:  

a alegria dobrada do meu ser que apenas é todo                                               ontem

Minhas flores, meu templo - Sergio Martins




Celebro e reverencio tudo o que é divino. Aquilo e aqueles que me foram dados de Graça, dedico meu tempo, dinheiro e minha saúde. Minha liberdade, por exemplo, é sagrada, irresistível e inegociável: abraçar meu filho, conversar com minha mãe, pedalar bicicleta, jogar futebol com a galera, caminhar sem destino, viajar com meus amigos, fazer novas amizades, passear por aqui e acolá, divertir-me muito... Outra divina alegria é minha solitude, a que me acaricia com as coisas que amo compartilhar comigo mesmo: o cair da tarde espiritual, o banho de chuva em euforia, a dança ao rock psicodélico e progressivo, as calmantes suítes barrocas, as sonatas de Bach, os andantes de Mozart, os adágios de Choppin, a degustação de uma sobremesa que preparo, os poemas transcendentes de Adélia Prado e Cecília Meireles, os filmes existencialistas de Malick...
Na solitude, permito-me ao silêncio em companhia das flores que cuido. Vê-las brotando, florindo, sorrindo e se multiplicando é um milagre, alimento de minha alma! É preciso estar em silêncio para apreciar a beleza, pois toda palavra lançada sobre ela é vã, não há necessidade de explicá-la; por isso minha oração é silente - um jardim que cuido e floresce ao meu redor... Dessa forma, estou pronto para ouvir o Criador.
É difícil quebrar o silêncio com algo que seja mais significativo, portanto, diante da beleza divina, apenas ofereço meu silêncio como reverência. Em silêncio eu converso com minhas flores. Elas me ensinam muitas sabedorias... Olavo Bilac conversava com as estrelas, e para quem achava loucura, ele respondeu: “só quem ama pode ter ouvido capaz de ouvir e de entender estrelas”. Eu entendo bem o parnasiano príncipe dos poetas brasileiros, pois creio que apenas os que têm amor próprio e que amam essa vida e esse mundo podem, de fato, ouvir as flores - em silêncio...
Percebo e sinto Deus em tudo o que é contrário ao medo, desespero, à agressividade - barulhos que profanam a sacralidade calmante e silente do tempo-espaço... assim, entendo que meu maior milagre é não depender de milagres religiosos, mas perceber diariamente o milagre divino em mim mesmo, nesta paz que me transborda a despeito de tantas guerras...
Religião é o demasiado falar. Espiritualidade é silêncio de adoração. Em silêncio, posso ouvir o que me é essencial, o que me é vital à felicidade.
Minhas flores, meu templo - onde oferto meu silêncio em adoração. Em contato com essas mágicas alegrias, estou em comunhão com o Criador.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Minha oração - Sergio Martins



Não vejo graça em liturgias, rezas decoradas, repetições sem vida que silenciam a espontaneidade da voz da alma, barganhas em troca da salvação, infinitos sacrifícios que deslegitimam a Graça, exorcismos, vidências, histerias que violentam o silêncio divino... A razão pela qual fugi da religião foi apenas uma: senti saudade de ver - o que é espiritual. Isso mesmo, renunciei a religião e apeguei-me à espiritualidade - para ver melhor; foi a Cecília Meireles quem me ensinou:
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
Na Gramática, oração também pode ser ação, para a teologia, é uma ligação/conversa entre humanos e Deus, em minha concepção empírica, é simplesmente ver. Daí, minha oração só pode existir através da transparência poética; e poesia é abrir os olhos para ver, ou seja, é o modo mais cristalino que tenho de pensar a vida...
Tudo o que eu via na infância de divino maravilhoso era mediante o olhar poético, isso porque, a criança não está interessada em fechar seus olhos, e sim, os quer abertos para degustar toda a beleza divina - ora, é da beleza que vivem os poetas... Por isso, às 18h, quando tine o sino da igreja, abro meus olhos para orar: vejo o céu metamórfico e metafórico a brincar com meus olhos, trazendo o encantamento da infância, e logo percebo imagens animadas de nuvens, a cigarra louva, o sabiá permanece estático no alto do poste, como fosse eu mesmo; absorto e bobo diante do mágico crepúsculo, perplexo com a chegada da noite e com os passarinhos, esses anjos eufóricos dançando mais uma valsa veraneia...
Em todo cair da tarde há um “cair em si" que me induz à ascensão. Nesse instante divino e maravilhoso, não sei quantos anos tenho, mas sei que estou livre de não ser eu mesmo, adulterado pelo adultismo... Lembrei-me da música Divino maravilhoso a me encorajar:
Quantos anos você tem?
Atenção, precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Tudo é divino maravilhoso
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte...
No mito do Gênesis, narra-se que Deus conversava com Adão e Eva no crepúsculo vespertino. O mesmo acontece comigo, pois aprecio no entardecer toda a beleza divina, como as sonatas calmantes de Bach. Assim, estou em comunhão apenas por ter meus olhos abertos para o que é essencial; de maneira que sinto-me como a lira de Orfeu ou a harpa de Davi: cântico prazeroso a Deus, capaz de serenar as discórdias e sensibilizar os filhos da guerra perdidos nesse pós-Éden... Não costumo fazer pedidos a Deus, por isso, desde o dia primeiro de janeiro tenho feito a seguinte promessa a mim mesmo: ver melhor. Meu desejo a mim mesmo é que eu jamais deixe de ser esta criança boba e calma diante das tempestades, que propague paz e luz, inspire alegria em meu sorriso e minhas palavras, como um Allegro de D. Scarlatti (após a triste sinfonia) que acabei de ouvir/sentir...
Para mim, toda travessia da tarde à noite é uma epifania; e hoje, após minha contemplação, adormeci, já sob o lençol da noite e guiado pelo Cântico IV – Adormece o teu corpo, de Cecília Meireles:
Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Queres ser a alma infinita de tudo.
Troca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?



sábado, 9 de novembro de 2019

Desnuda - Sergio Martins

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Ouve-se o mundo
Houve um surdo
Houve muda mudança
A mudança que apenas muda
Andança de silêncio absurdo
O silêncio doía turvo
Gritos dançantes pela noite desnuda.

Eu, ator - Sergio Martins

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Nem a calmaria do amor seguro e morno nem a ebulição da paixão.
Respiro agora o ar puro dos meus próprios caminhos livres dos tédios e cansaços de antigos sentimentos.
Passada a ânsia pela chegada da aurora, transito distraído e absorto dos alheios mundospela certeza de que a caminhada é enlace prazeroso.
Já não faço os personagens que, a fim de agradar ao público, como ator cumpria; porquanto, sem a dependência por aplausos ou vãs companhias, passei de expectador de juízo alheio para cumprir meu único e inalterável papel: viver a minha vida. 

Bestalhão - Sergio Martins

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Serena-me sempre uma seresta com cachaça ou garapa,
qualquer sereno em fogueira...
É que, torna-se festa uma boa conversadeira,
Deixando-me flutuante a alma entojada...
Contudo, nem o céu estrelado
ou toda a beleza desse roçado
cura-me da saudade que dói o meu ser por inteiro,
Como se eu fosse um bestalhão deitado sobre um formigueiro.

Terra danada - Sergio Martins

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Regando o caminho com lágrimas, caminhei léguas a pé.
Paguei promessas a Jesus, Maria e José.
Entre rezadeiras e muita trabalheira,
dessa terra provei do bom e da besteira:
das muitas rosas e calmaria de camomilas,
nada que lubrinasse meus dias;
pois me cansara de roçar sem alegria
a terra danada de minha dona Maria.

Por medo -Sergio Martins







Por vezes, matei a vida por medo da morte   
Admirado, contemplava a festa nos paços de teus olhos

Há tempos, por medo da vida assassinei meus lirismos 
tentando em vão matar a boa morte     
que brota desse amor

Os poetas sabem que só se deve beber da vida   
O fim da taça

Eu já não sei mais viver pelos mortos
Que me assombravam a felicidade
Rendo-me aos pueris devaneios do prazer:
Sem poesia, toda verdade é distopia,
Sem felicidade, até a morte é vaidade

domingo, 6 de janeiro de 2019

Ganha-pão




Zezinho detestava estudar pela manhã, mas às segundas-feiras acordava bem cedo para ir à aula de Educação Física. Essa era a única disciplina que gostava, pois lhe dava a oportunidade de exercer seu talento para o futebol. O pai pediu-lhe que não demorasse para trazer o pão, temendo atrasar-se no trabalho. O garoto, sabedor que na ali na favela sempre faltava merenda na escola, tratou logo de garantir sua primeira refeição do dia. Na saída padaria, um cachorro magrelo e esfomeado abanava a cauda pedindo-lhe o pão. Xô, cachorro!
O cãozinho parou, abaixou a cabeça, mas insistindo conquistar seu bocado diário, retornou; quando Zezinho deu as costas Xô, cachorro!
Os carros da Polícia subiam velozes o morro. Assustado, o moleque encostou-se à parede, desceu devagar, sentou-se no chão; recolhido do mundo horripilante.
Xô, cachorro! Gritou um Policial.
O menino se levantou. Notando a distração do garoto, o vira-lata saltou, conquistando um pão.
Xooooooooooo, pulguento!!! Gritou o PM.
O moleque correu em disparada. O esquelético cãozinho, orgulhoso de vencer mais uma batalha, correu pelo canto da viela exibindo o alimento entre seus dentes como um troféu.
– Xô, cachorrada! Ladravam os cães do Estado.
A roda de vadios espalhou-se em debandada, entre xingamentos e latidos de vira-latas. A matilha se dispersava pelos becos, sumiam pelo morro acima. Os raivosos de raça vinham logo atrás, disparando o terror, num lastro de projéteis e estampidos de guerra.
Já no portão de casa, Zezinho driblava os policiais que rodeavam os corpos estirados pelo chão. Um policial fez a revista. Lançou os pães no chão para conferir se havia alguma droga no saco, os cachorros famintos abocanharam tudo. Com muito esforço, o guri convenceu o policial a deixá-lo passar pelo portão.
No barraco, sem os pães, o pai surrou o garoto, sabido que perderia o seu ganha-pão porque os policiais não o deixariam sair, e outra vez chegaria atrasado no serviço; o que o seu patrão lhe avisara que seria imperdoável.
Hostilizada pelos favelados, a brutalidade canina do poder público se retirava do morro e, alimentada de vingança, exibia os corpos vencidos que pintavam aquele solo barrento de um vívido vermelho-Brasil. Os porta-malas mal cabiam de tanta presa. Certamente, um dia muito proveitoso, o delegado se orgulharia da matéria na TV com tantas apreensões e mortes de vagabundos, o que agradaria seus chefes. À noite, pelas vielas, de pouco em pouco surgiam outros cachorros em busca do ganha-pão de todos os dias.


A Bela de Ju




Bela fazia muito bem o dever de casa, e para aliviar o labor, pintava óleo sobre tela. A casa toda um brio, um brinco - esmeralda o piso, ao esmero de suas mãos. Apequenava-se diante de tudo que ao seu redor crescia: as flores, as casas, os vizinhos... Sobre ela, o mundo em prosperidade debruçava-se pesado, conduzindo-a num aperto esmagador.

Na sala, diante da TV ligada, dormia o marido ébrio, aquela fera insana; roncando agressivamente. Sozinha, na cama, a mulher lembrava do sonho de menina, da ânsia de livrar-se da penúria da roça, de estudar, casar, ter filhos, viajar com a família... Surgira assim o caminhoneiro como seu passaporte gratuito ao paraíso. Mas em pouco tempo, dos serviços cansativos em casa, o suor caía nos seus olhos e escorria pelas feridas como um pagamento escravista e, do macho, sofria seu olfato ao ardente etílico, o medo e a culpa, a tristeza de ver seus quadros rasgados, suas pinturas manchadas, seu corpo espancado, a vergonha por causa das marcas no corpo... 

Na ausência do monstro, irmã Ju, da Ordem das Marianas, fazia companhia e bons carinhos à Bela que, dizia viver apenas por esses dias, nos quais, experimentava as delícias verdadeiras de um casamento, porque sua companheira tinha o amor que enchia de paz e alegria o seu mundo deformado. A chegada do marido compunha o inferno: em loucura, adentrava o bicho ébrio na casa, machucando a porta, caindo pela sala, esbarrando, quebrava cerâmicas e eletrodomésticos. Desde o bar, gritava insultos, empossado por ciúme de irmã Ju, pois odiava os carinhos exacerbados com sua mulher, a sua posição respeitada na sociedade, a imposição feminista que ameaçava seu casamento, o jeito masculino da religiosa - enfeitado num largo habito.
No longo período sem ver irmã Ju, Bela definhava, faltando-lhe os cuidados básicos com seu corpo. Reclamando de sua aparência e do cabelo crespo que crescia naturalmente, o maldito rapou-o completamente, após surrá-la. Envergonhada, Bela passou a usar turbante africano e uma bata que escondia os hematomas. Irmã Ju apaixonou-se tanto pelo estilo que passou a ensiná-la cultura africana e empoderamento feminino. Passaram, então, a sentar com Carolina de Jesus, punham Conceição Evaristo no colo, namoravam Angela Davis, ouviam Elza Soares, beijavam Ella Fitzgerald, acariciam a Jovelina Pérola Negra...  

Odiando a moda de africanidade, o marido sovou-a com incontida violência. Após o surramento, o bruto sempre dormia bem, mas na ocasião, um pesadelo atordoara seu espírito: o fogo o consumia, e ele sequer podia fugir, preso ao chão pelo corpo pesado de álcool. Sob o terror do sonho, resolveu fazer plano de saúde e seguro de vida. Passou a ser devoto de Santo Expedido.

Tensa, a mulher fumava muito tabaco. Olhava de soslaio para a imagem de Santo Expedito, com quem reclamava sua impaciência pela demora do milagre pedido,muxoxava e rangia os dentes,ameaçando fazer uma loucura.

Às 18h, acendeu a vela para o santo e foi ao mercado. Pelo caminho de volta à casa, as sirenes soavam, de longe via a fumaça que subia alto... O incêndio levara a pequenez e o grande peso do seu mundo: o bruto fora fritado, sem ao menos sair do sofá, de tamanha embriaguez; sem notar a vela acendida para o seu Santo protetor, que lambera de fogo a cortina embebida de cachaça por Bela. 

Irmã Ju abigrou Bela, remediou suas feridas, relaxou seu corpo. Aliviada das dores, Bela descobrira a curtir bem o seguro de vida e sua aposentadoria, e aprendera rapidamente a sorrir - sob o gozo do amor (vingado). 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O canto da sereia



Desbravando uma trilha desconhecida na Ilha Grande, o rapaz se perdeu. Exausto da longa caminhada, descansou abaixo de uma árvore, antes de seguir mais um longo percurso à beira-mar. Caía a tarde. Avistou alguém, ao longe. Acelerou  os passos. 
Era uma mulher que dormia tranquilamente na areia. Ao lado, as bijuterias indígenas que produzia. Descansavam seus seios molhados à sombra de dois quadros de tecido feito por ela, tratavam-se de um Realismo que exibia um litoral decadente e uma natureza-morta.
O homem mal podia crer no que via: o Cubismo insano, o Surrealismo do seu olhar. É uma miragem, só pode ser! Que estranho! Pensou. Enquanto admirava os longos cabelos que deslizavam na areia ao efeito da brisa fresca; aqueles belos, cheios e luminosos cabelos.
 Oi, menina! Estou perdido. Você também está?
 Estou passeando. 
Passeando? Não é perigoso passear sozinha por aqui? Eu te acompanharei. 
 Não preciso de homem para me defender e sou livre para ir aonde quiser.
Ele sorriu. Os olhos pausados no biquíni de cores da bandeira da Jamaica. Curtia o reggae de Bob que vinha do celular dela.  
Para quebrar a  seriedade da riponga, resolveu cantar Gilberto Gil: "Abacateiro, tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a namorar..."
Observando a camiseta da UJS do moço, ela ironizou: 
Então temos um esquerdo-macho com terrível senso de humor para cantada? Eu tenho uma música melhor para ómi alfa, bem no estilo Bossa-Nova de Jobim: "Olha que coisa machista e cheia de graça!!!" 
O bobo só ria, aficionado pelo gótico batom preto nos lábios da menina, que flamejavam sob a vermelhidão crepuscular.
 Você mora por aqui e faz miçangas, né? 
- Moro aqui e acolá. Minha contribuição social é ser rendeira, ensinar a arte de  miçangas... mas sou pós-doutora em Serviço Social, formação internacional em Ciências Sociais... 
O olhar bucólico da mulher na noite que chegava o envolvia no místico, num encanto, feito o sedutor e traiçoeiro canto da sereia. Era ela, para ele, a definição perfeita do seu conceito de arte. 
Qual o seu nome, linda?  
Krawcrzyszchlaévski.  
 Putz! 
Sereiazinha, é bem melhor, pensou. 
Olha, eu preciso voltar, mas nem sei como...
Vem machinho, vou te mostrar um lugar. É pelo matagal ali à frente...  
Não. É noite já. Vamos por lá... 
Está com medo, hominho? Que menininho assustado!
O matagal dava para o outro lado do praia, onde descansava o barquinho da moça. Rapidamente entraram no mar sem destino.
Como você é linda, minha sereiazinha!
Não sou tua, sou minha, e nada de diminutivos.   
O barquinho balançava desengonçado aos empurrões das ondas.
Sou capricorniano, a terra é o meu mundo, tenho medo de mar aberto, não sei nadar...   
Sou Leonina, gosto de aventuras no litoral... Sou nadadora profissional e tenho curso de salvatagem em alto-mar. Você nao deveria ter medo de sereia, machãozinho... Tome esse chá de cogumelo para o medo passar... O chá deixou o moço fora de órbita. Alucinado, vislumbrou carinhos loucos no corpo da sereia, beijavam e arranhavam-se numa transa louca.
 Exausto e acalmado num lisérgico além-mar, esquecera do que não deveria dizer: 
Minha sereiazinha, minha deusa, minha rainha! Achei muito bonita a sua aranha... 
Que babaca!
Falei da sua tatuagem. Por que uma caranguejeira? 
Temos muitas coisas em comum. 
 Cruzes! Deus é mais!!! 
Uma tontura o acometeu, já não sentia o corpo. As vistas embaçadas apagavam tudo ao redor. Ouvia apenas o canto da sereia levitando Caetano Veloso: "Adeus, meu bem, eu nao vou mais  voltar...   Ai, água clara que não tem fim, Não há outra canção em mim..."
Que bela canção, minha sereiazinha linda!
 O homem caiu no mar, preso às teias do chá que continha secretos ingredientes. Sôfrego, o corpo ao menos se debatia, desaparecendo aos braços do mar noturno. Ela assistia a tudo cantando, rindo a satisfação e o orgulho pelo cumprimento da promessa de nunca perdoar quem a diminuísse: "De madrugada, quando o sol cair dend'água, vou mandar te buscar..."

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