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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Viajante alado por Sergio Martins


Pelas manhãs de inverno quando o frio é intenso e a chuvinha cai vagarosa feito poeira se evaporando, aquele velho desce do seu casebre no morro e sobe a serra com seu retalhado chapéu de palha, o blusão e a calça de tergal rasgados; desbotados. Enquanto a chuva lhe acaricia o corpo magro e negro, ele segue atento a todo encanto natural da colina, lembrando de sua juventude problemática, da menina mais bonita da escola que namorou mas que o rejeitou por vergonha de sua pobreza, ou pensa, com grande tristeza, de como o tempo foi rápido e severo ao pôr tão depressa os pesos em suas costas agora encurvadas, as dores em seus pés, as rugas e as olheiras no rosto...

A subida cansativa compensada pela esplêndida vista é uma terapia que lhe amaina a azedo de sentir-se inútil, de não ter de volta o emprego perdido injustamente na juventude, de jamais gozar da alegria de ser pai e um homem amado por sua esposa, embora ainda guarde e oferte tanto amor ao seu pobre mundinho e sustente o sonho de ter o seu grande amor.

Desta vez, ele não consegue ir até o alto. Para junto a uma mangueira e se encosta. Tira o chapéu molhado e o sacode, enxuga as lágrimas que começam a misturar-se com o resto da garoa que se dispersa na ventania. Depois de alguns minutos abaixo da mangueira sentindo os badalos inquietos de seu peito, desiste de seguir em frente. Entrega-se ao chão folheado, acende um cigarro e vê um Sabiá sobre o cerco de arame farpado que ignora sua presença continuando imóvel e silente. Ele que sempre sofreu com o temor de tornar-se um mendigo ou abandonado pelos amigos, agora, diante do mágico e solitário pássaro, compreende como os grandes sábios puderam se enveredar sem grandes danos pelo desfiladeiro do isolamento, da sensação de abandono e encontrarem os bosques de toda beleza contraditória, de toda poética triste e prazerosa que só habita os labirintos vazios e silentes da alma.
Aquele viajante alado começa a cantar enquanto o velho sente uma tremenda aflição ao ver nele o seu límpido espelho: alguém que irá para sempre sem jamais ter sido percebido, um ser solitário que tentou a todo custo musicar sua vida com as notas do prazer. O estradeiro voador é um espelho tão luminoso de seu íntimo que ele, andarilho de asas sonhadoras e de canto melancólico, volta para o seu casebre com medo da solidão que lhe assombra desde o dia do seu nascimento. É quando, a passo, desce a estrada enlameada pensando: se fosse rico, não me acometeria tal fado?

E tão logo, vê-se aos pés do seu Calvário particular como se estivesse no altar do seu deus. É aí, na entrada da serra, que ele sempre se vê melhor: por baixo de tudo e de todos; onde sua posição é estar num permanente debruçar sobre o cerco de suas emoções aliviadas do caos suburbano e diário.

Primeiramente, aquieta-se trazendo à memória o encanto do viajante alado, permanece silente por alguns minutos, arrepende-se dos murmúrios soltos em demasia, ignora a presença de seus fantasmas abraçando sua fiel e inseparável amiga solidão e por fim, remete ao seu deus sua música agradecida certo de que a vida continuará sendo uma canção solitária - embora grávida de amores felizes.





Foto: Google

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