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terça-feira, 14 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 2 - Sergio Martins






Sem poder evitar, ele se pôs a dormir depois de beber um forte suco de maracujá enquanto eu me direcionava à sala a fim de saborear as pinturas dos quadros e talvez absorver nelas alguma técnica psicoterapeuta para desafogar o amigo de seus conflitos.
Dentre os suntuosos quadros, fui seduzido por uma lindíssima tela de assinatura anônima. A arte era fiel em seu realismo, seus contrastes de luzes, sombras e cores exaltavam com perfeição a colorida paisagem gravemente tocada pela neve sobre as árvores secas qual algodão enrolado nos seus galhos, pelas planícies cobertas de gelo como se esperassem os esquiadores, pelo mar branco que em minha percepção tomou a forma de uma pista de patinação, por um enorme e alvíssimo campo convidando as crianças para fazerem bonecos de neve e pelo céu anil e orgulhoso de ter o seu majestoso sol.
Naquele momento, meu corpo sofrido pelos trinta e poucos graus queria a piscina que já estava transbordando à minha espera, ao tempo em que eu me ocupava em decodificar a mensagem da pintura anônima e o que se escondia por trás das palavras com as quais o amigo me respondeu, me faziam trabalhar demais a imaginação: O sol tão fraco neste quadro que vale o preço de uma Esmeralda, e em minha alma amanhecendo – poesia.
Saí da piscina às quinze horas despertado pela fome. Comi uma maçã graúda e bem vermelha que me fizera lembrar da bruxa que ofereceu esta admirável fruta para a bela que ao comê-la adquiriu o feitiço da longa sonolência, entendi que de igual modo o amigo quis a mandinga do sono ao tomar um concentrado suco de maracujá para se distrair da vida festiva e complexa, então, tomei suco de laranja com bolo de chocolate depois de almoçar filé de peixe grelhado com bastante salada de verduras. Fui ao quintal descansar sentindo o vento fresco e lá fiquei por um considerável tempo ao balanço da rede e quando ia me esquecendo da vida a música dos Bem-te-vis me fez levantar e ir de novo à tela inominada, sendo que, agora, ao som de uma valsa de Strauss minha mente se arejava e eu percebi na pintura a presença de um menino que parecia atento à contemplação da paisagem e no seu extremo horizonte havia uma muralha de cidade medieval. O quadro que era fenomenal e simplesmente o retrato de uma página do cotidiano do pintor, tornou-se misterioso; não consegui entender o motivo que levou o artista deixar aquela pobre criança no meio da floresta daquela frígida manhã, muito menos o significado da muralha ao longe que encerrava a paisagem feito linha imaginária. Do relógio central da sala ouvi o tic-tac marcando dezessete horas; ao que me apressei para ver como estava o amigo. Abrindo a porta do seu quarto o vi sentado à beira da cama chorando aos soluços. Eu sabia que a má administração das crises do companheiro o levara a este estágio inicial da depressão, mas o seu pranto me fazia entender que toda sua vontade de morrer evidenciada na ausência de fome, de sono e de ânimo, na verdade, era um manifesto de quem desejava viver intensamente. Sua tentativa de suicidar-se aos poucos não era o desejo de fugir da vida, e sim, um protesto equivocado, a vontade de driblar os problemas que a vida trazia como um empecilho ao seu afã de amá-la demais e com êxito.

Um comentário:

SOL da Esteva disse...



Esta, uma continuação, "[...] um manifesto de quem desejava viver intensamente. Sua tentativa de suicidar-se aos poucos não era o desejo de fugir da vida, e sim, um protesto equivocado, a vontade de driblar os problemas que a vida trazia como um empecilho ao seu afã de amá-la demais e com êxito."
Uma "quase" verdade, real, vivida.
Pelo menos mostra um conhecimento muito interior dum estado.

Abraços


SOL

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