Páginas

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O sentido - Sergio Martins


O concerto para clarinete de Mozart consertava meus desafinos na singeleza da tarde regada a um delicioso vinho sob os gotejos da garoa ao clima de montanha...
Mal se despedira o chuvisco e as crianças já abriam as porteiras para brincarem  nas poças, com sapos,  rãs nos brejinhos transbordantes e se ensoparem na lama com o pretexto de jogar futebol.
Os pardais desabrigados enxugavam suas asas e levavam galhinhos para o lugar do novo ninho, os vira-latas se achegavam até formarem um grupo que viajaria em mais um dia de aventuras.
Alguns coelhos se despiam do medo e saíam de suas tocas para almoçarem juntos, os gatos permaneciam sonolentos e na despedida da chuvinha, a alegria da vida natural encontrava uma oportunidade de retomar o seu espaço.
A folia de toda a paisagem que eu saboreava na sacada mais alta da serra, crescia juntamente com o último concerto do disco que sobrevoava o meu ser – é porque, geralmente, o último concerto dos discos é um "Alegro", uma canção festiva traduzindo o resultado feliz de uma sofrida história de amor –, por isso, fiquei muito contente com a terra-pátria-amada-mãe-gentil, da qual, sou um com ela; pois,em tudo o que eu punha os olhos sentia uma canção encantadora.
Até que minha conversa com a harmônica sinfonia foi interrompida pela bagunça que vinha do barzinho: os mais velhos xingavam uns aos outros, entre jogatinas e ameaças puxavam-se facões numa rivalidade que para eles era tão normal como a doença de se embriagarem todos os dias em nome da pseudo liberdade; estavam diante de mim os personagens confusos de um carnaval psicológico que os proibiam a busca da verdade como referencial de um sentido para suas existências.
Logo surgiu uma cena em minha mente: desci agarrando um velho furioso, lhe sacudi e gritei para acordá-lo de sua insanidade:
- Não sentis o confortante perfume dessas encantadoras canções...?!!!
Sem demora, respondi para mim mesmo ao perceber que ninguém me dava atenção: ora, é óbvio que não podem sentir porque estão loucos, sem esperança e famintos de um significado que somente o amor – arte poética, livre e libertária – pode criar, posto que, sem poesia, toda a verdade é utopia! E já acalmado pelos Sabiás e Bem-te-vis que se amigavam com a frondosa mangueira repleta de frutos bem à frente da sacada, lembrei-me de uma frase que mais tarde eu usaria para um daqueles antipoéticos que me ignorou: “se você não encontra sentido nas coisas, é porque o sentido não se encontra. Se cria”. (Saint Exupére)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 3/ final - Sergio Martins




Quando ele notou minha presença, pausou o choro. Ao levantar-se largueando meio sorriso, abraçou-me agradecido pela companhia e revelou-me que acabara de acordar de um sonho. Daí passou a narrá-lo para mim: "em meu sonho, adentrei na realidade da tela misteriosa e fiquei observando o menino sentado na grama esbranquiçada pela nevasca à clareira dourada da manhã como se estivesse hipnotizado em direção ao reino cercado pela muralha que ao longe, ainda embaçada pela neblina, os raios solares nos permitiam contemplar..." Me aproximei perguntei ao amigo o que mais o atraíra no sonho; e ele disse que era o muro alto e a linda paisagem. E acrescentou: não entendi o sonho, mas já que há tempos não tenho um sono e um sonho tão bom quanto este, me sinto leve, com fome e até mesmo com vontade de caminhar pelas ruas.
Não sou psicanalista para conseguir destrinchar o inconsciente alheio, porém, explorei em mim o interpretador de sonhos lhe informando que finalmente entendi os conselhos da pintura anônima: a cidade medieval precisa de um muro para sua segurança enquanto a paisagem está livre e aberta para todos virem e degustarem sua beleza. Você é uma cidade que compromete sua felicidade por causa da autodefesa agressiva – a muralha. O mundo e a vida continuam seguindo seus cursos naturais; isto é, não são as coisas e as pessoas que vão mal, você é que se fechou para a beleza por causa da péssima gerência dos seus conflitos...
Ele me interrompeu: E por que o garoto na friagem do ventre da floresta?
— Porque somente a criança que mora em nós – a qual, vez por outra é abandonada pela nossa madrasta projeção sentimental – consegue passar de um episódio depressivo à euforia sem permitir que em seu íntimo seja instalado um estado glacial das emoções; pois em meio aos colapsos, ela, a criança, não perde a liberdade de alimentar-se da beleza, de não se vitimar pelo inverno existencial, pois, o seu firmamento interior é primaveril e influencia sua realidade com suas luzes, cores e graça. O muro é a representação da raiz dos problemas que a criança não nega, os encara e os coloca no seu lugar: bem longe de si. O pintor, quem sabe, vivendo à escuridão de suas emoções, também sentiu a dor de todos nós, a dor de carregar no colo da alma o menino abandonado que nunca nos abandona?
E assim como o amigo iniciou o dia com aquela palavra melancólica do nosso grande poeta, também encerrei nosso diálogo com um conselho sobre o desfecho de nossa história em contraste com a incapacidade de criar e de enxergar beleza nos momentos mais difíceis:
Assim eu quereria meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais.
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas.
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume.
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos.
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(Manuel Bandeira — O último poema)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 2 - Sergio Martins






Sem poder evitar, ele se pôs a dormir depois de beber um forte suco de maracujá enquanto eu me direcionava à sala a fim de saborear as pinturas dos quadros e talvez absorver nelas alguma técnica psicoterapeuta para desafogar o amigo de seus conflitos.
Dentre os suntuosos quadros, fui seduzido por uma lindíssima tela de assinatura anônima. A arte era fiel em seu realismo, seus contrastes de luzes, sombras e cores exaltavam com perfeição a colorida paisagem gravemente tocada pela neve sobre as árvores secas qual algodão enrolado nos seus galhos, pelas planícies cobertas de gelo como se esperassem os esquiadores, pelo mar branco que em minha percepção tomou a forma de uma pista de patinação, por um enorme e alvíssimo campo convidando as crianças para fazerem bonecos de neve e pelo céu anil e orgulhoso de ter o seu majestoso sol.
Naquele momento, meu corpo sofrido pelos trinta e poucos graus queria a piscina que já estava transbordando à minha espera, ao tempo em que eu me ocupava em decodificar a mensagem da pintura anônima e o que se escondia por trás das palavras com as quais o amigo me respondeu, me faziam trabalhar demais a imaginação: O sol tão fraco neste quadro que vale o preço de uma Esmeralda, e em minha alma amanhecendo – poesia.
Saí da piscina às quinze horas despertado pela fome. Comi uma maçã graúda e bem vermelha que me fizera lembrar da bruxa que ofereceu esta admirável fruta para a bela que ao comê-la adquiriu o feitiço da longa sonolência, entendi que de igual modo o amigo quis a mandinga do sono ao tomar um concentrado suco de maracujá para se distrair da vida festiva e complexa, então, tomei suco de laranja com bolo de chocolate depois de almoçar filé de peixe grelhado com bastante salada de verduras. Fui ao quintal descansar sentindo o vento fresco e lá fiquei por um considerável tempo ao balanço da rede e quando ia me esquecendo da vida a música dos Bem-te-vis me fez levantar e ir de novo à tela inominada, sendo que, agora, ao som de uma valsa de Strauss minha mente se arejava e eu percebi na pintura a presença de um menino que parecia atento à contemplação da paisagem e no seu extremo horizonte havia uma muralha de cidade medieval. O quadro que era fenomenal e simplesmente o retrato de uma página do cotidiano do pintor, tornou-se misterioso; não consegui entender o motivo que levou o artista deixar aquela pobre criança no meio da floresta daquela frígida manhã, muito menos o significado da muralha ao longe que encerrava a paisagem feito linha imaginária. Do relógio central da sala ouvi o tic-tac marcando dezessete horas; ao que me apressei para ver como estava o amigo. Abrindo a porta do seu quarto o vi sentado à beira da cama chorando aos soluços. Eu sabia que a má administração das crises do companheiro o levara a este estágio inicial da depressão, mas o seu pranto me fazia entender que toda sua vontade de morrer evidenciada na ausência de fome, de sono e de ânimo, na verdade, era um manifesto de quem desejava viver intensamente. Sua tentativa de suicidar-se aos poucos não era o desejo de fugir da vida, e sim, um protesto equivocado, a vontade de driblar os problemas que a vida trazia como um empecilho ao seu afã de amá-la demais e com êxito.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 1 - Sergio Martins




Entrando a primeira hora da tarde de um dia ensolarado ele acordou mal-humorado e angustiado com tudo. Permaneceu na cama, trancado para si, corpo doendo de tanto estar deitado. Quando não se deitava à tarde pela noite mal dormida, acordava bem cedo por causa dos pesadelos; em suas olheiras se percebia que há muito não dormia bem, apenas cochilava aprisionado pela insônia. O fato é que ele havia me pedido para passar a noite em seu quarto a fim de não ficar a sós com aquela depressão. Até que se levantou e ligou o ar condicionado para amenizar a quentura do corpo, mas logo que o vi voltando para cama na tentativa de dormir novamente, entendi que ultimamente, toda sua trajetória após sair da cama era um grande esforço para negar a realidade, as possibilidades de achar prazer em meio às crises, as melhores coisas da vida que se recebem gratuitamente... Então, no momento em que se acomodou no leito, tentei animá-lo: está um dia tão bonito lá fora...! Sua resposta veio neste lindo protesto de Manuel Bandeira: O sol tão claro lá fora, o sol tão claro, Esmeralda, e em minha alma – anoitecendo.


sábado, 11 de agosto de 2012

Soneto ao vale de lágrimas - Sergio Martins




Finalmente desisti de te buscar pelos céus de ares tropicais.
Desafinado e rebelde cresci, diminuído de pesar,
e como um tema fúnebre te vi - lua triste, falazes cais -;
continuei sendo palavra ao ar, pensamento solto no mar.

Onde estavas ao segurar e apertar minhas mãos às suas,
ao adoentar-me febril em pesadelos nas geleiras passionais,
na ira pela qual atacava meus vilões ou em covardes fugas?
Onde guardastes as estórias, as festas e tuas estradas rurais?


Insisto e te chamo não sabendo o porquê desse querer estar são;
de ver-te e festejar. Mas o que agora quero é deixar de desejar,
não ter que partir tendo meus sentidos partidos em um amor vão.

Por fim assisto seu fim, suicidando-me aos poucos na lua invernal,
e já que és a imagem da fuga dentro de mim, tento me encontrar
afogado em dúvida e medo - peregrino no vale de lágrimas paternal.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Olhares lunares - Sergio Martins






Foi-se o mar. Estrelas descansaram. Andorinhas descobrem novos horizontes e a chuva desaba mansamente enquanto me acolho na gélida canção de um vento ansioso.

O barco lança as âncoras, as pegadas somem na areia em que se fragmentam os desenhos e as palavras afetuosas, os pés se afundam na umidade imprevisível, ondas alvoroçadas formam espumas densas - uma breve inquietação pelas questões do amanhã - os carros passam velozes e inconsequentes como as preocupações... E eu só queria estar ali, degustando aquele sabor glorioso, mas você não veio... Deixei de esperar, fui me rebuscar no céu do mar onde a lua que estremecia no balanço da maré alta era a recordação das turbulências do seu olhar...

Outrora, você corria ao meu encontro e eu não deixava de me encontrar apaixonado e quando partias, nossas partes se uniam; hoje, em razão de ser expulso, eu sumo, sua voz desaparece e para o meu anoitecer, nesse mar você se reflete.

Mas é por ingenuidade de te sensibilizar com esse meu jeito de obter novamente aqueles olhares lunares, que no silêncio desse expressar longínquo e desse velejar transoceanico, me torno exaustivo à picotar-te à emoção:

vai-te amar,
vai-te às maresias
para o teu ser libertar!

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Coleira - Sergio Martins




Não. Descreio completamente que minha dor maior venha da despedida permanente que mora em teu semblante ou o fato de eu ter te amado demais e até mesmo incorretamente, pois ainda se falasses mil vezes que meu amor por ti foi uma cisma replicante, eu sei o que representastes para mim e por isso, devo lhe agradecer – por te conhecer de perto –, ainda que hoje representes nada mais do que aquela antiga e estranha beleza – uma fotografia revelando a magia feliz de um tempo doloroso, um filme sem o fim esperado, o insucesso da viagem sonhada. Na verdade, agora posso admitir que o problema todo, como sempre, flui de mim, pois ele é minha parte inseparável, eu sou o epicentro, a raiz dos meus-teus problemas. Sinceramente, sei que a culpa toda foi minha como você mesmo sempre soube a ponto de dizer muitas vezes; visto que, se eu não fosse tão aventureiro poderia de fato ser mais feliz, feliz contigo, todavia, meu inconformismo – com a tristeza que emana de tua beleza – não te recebe, de modo que sua cólera, suas grosserias descabidas que me constrangeram e me feriram demais é o seu mundinho em que não há lugar para mim – isto você me advertiu várias vezes –, porquanto, essa tal cólera é a coleira que jamais aceitei, pois sou pássaro de voos estranhos e distantes de tuas altivas planícies.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Soneto ao feitiço e ao feiticeiro - Sergio Martins




Aguardo ansiosamente a lareira de mais um inverno,
aguardente expectativa feito redemoinhos;
há coelhos acuados, cheios estão os ninhos,
formigas descobrem funduras e se perdem no tempo.

Acende-se o tronco seco- quebrado, furtado e preso às raízes
de desprezo pelo tempo- no anseio pelos brotos,
avermelha-se de fúria, esquenta-se de desgostos;
de nada valerá: fumegará ao som dos seus estalos infelizes.

As águas se esconderam para sempre desse andarilho aventureiro,
o fogo que lhe consome é feitiço dado ao feiticeiro
que desbravou mares e desertos, mas que só achou espinhadeiro.

No fogo e frio, o feiticeiro encontrou seu amor - tino existencial -,
alimento sólido para a beleza imensurável do seu ser;
mas o fogo - arquiteto e inquieto - consumiu todo o seu cafezal.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Em pleno inverno - Sergio Martins




Em pleno inverno vi, como fosse a "Primavera Árabe", o céu azul sem nenhuma nuvem,
o mar convidativo, Plátanos, Abricós e Acácias
iluminando as vias de sofisticados carros,
crianças brincando num belo parque em meio à correria
do Centro, foliões à beira mar, danças e teatros de rua,
pomposos museus e espaços culturais,
a menina tranquila pedalando sua bicicleta,
admirada com pássaros que musicavam a via expressa...

Em pleno inverno vi propagandas de consciência ambiental,
de túneis e estradas encurtando o tempo-espaço, estádios irresistíveis, hospitais enormes e bem equipados, escolas recém construídas e a cidade bem limpa.

Em pleno inverno vi que a limpeza varria o "lixo social" dos olhos dos turistas, foi quando senti saudade das folhas de ipês colorindo o chão, da terra livre de todo esse concreto frio, dos moleques lotando às ruas para apanharem mangas, carambolas e jamelões...

Em pleno inverno vi um sabiá apático, a cidade sem voz, a esperança perdida dos que só têm um fim de semana para resfolegar o que só adia suas mortes - em vão...

Em pleno inverno vi que para construir casas, destroem-se árvores, que o "progresso" perdura, que há mais expectativas, estimativas e perspectivas se contradizendo nos jornais; mas todo esse custo é na mesma proporção:
trancas nos carros,
cadeados nas janelas,
alarmes nas casas,
câmeras em toda quadra
e o negro trabalhando muito mais,
embora ganhe menos que o imaginável.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Viagem de volta - Sergio Martins





Ela ouvia música celta, cumprimentava Namasté,
vestia indiana e indígena, preparava meu Frappé,
estimava caveiras mexicanas, fazia Origami,
Habló muy bien, mas tinha amor de Tsunami.


Nem posso reclamar de sua longa viagem,
ela deixou mais do que juntei até aqui.
De profundo, já esqueci do que é margem...
Ela sempre ria quando a chamava de caqui...

Eu fui o que serei e terei lembranças do que sou,
o Julho frívolo terá a mesma fervura pra cozer
e dar tempero a toda vida que nos alimentou;
assim hei de viajar e dar asas àquele prazer.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Soneto do retrato - Sergio Martins

                                                    




A poeira de chuva desembaça a retina do menino impactado pelas visões.
O frio por fora da lente, por dentro, uma paz eufórica- interior oxigenado...
Dançam os namorados ao bolero- a terra remove suas pétreas emoções;
o inverno não é tempo de guerra- reflexo do íntimo no retrato congelado.

A árvore seca remonta a pessoa como de fato ela é- olhar sem maquiagens.
Blocos de gelo deslizam sobre o rio- diamantes criando ilhas cristalinas...
No olhar distante brotam pedrinhas brilhantes- paraíso de imagens,
calma e movimento em vales nebulosos- arte glacial eternizada nas colinas.

Estagnei desorientado frente à névoa sobre os montes metalizados de magia,
feito vapor que sobe do bule para eu me deliciar no café aromático; de fato,
ao captar o subjetivo ali esculpido, senti-me destrinchado pela fotografia.

Na excitante graça de receber a felicidade em tudo que eu pudesse ver
nesse estar-encantado, fico perto de mim - não estou mais onde meu corpo
está - transladado e envaidecido pelos fotógrafos habitantes do meu ser.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Pela sombra - Sergio Martins




Porque estou tão feliz e isto  não é novidade pra você,
é dor advinhar as canções de teu assobio fleumático.
São maravilhosas todas as suas composições e ficções;
mas lembra daquela tão forte luz dourada em que eu mal
enxergava seu rosto e de como seguia feliz pra escola
com seu jeans gasto, tênis rasgado e cabelos coloridos?.

Não me diga nada, nem precisa me olhar do jeito que gosto,
dê um salto pelas ruas e sinta o calor desse dia pois há
tanta clareza fora de nós...
Não precisa pôr seu novo batom, o caro perfume ou este
vestido de sua grife preferida, apenas deixe este sol de
inverno te aquecer e não volte com a mesma pele...

Porque eu me sinto tão feliz e isto não é novidade pra você,
ao menos hoje - deixe o barco correr - meu amor, volte ao
lar doce lar, depois sim, vá pela sombra.

sábado, 23 de junho de 2012

A outra estrada - por Sergio Martins

[woods.jpg]





Não confunda encostamento com acostamento.
Não há despensa, nem dispensa ou conveniência,
só esse desmedido punhado – de emergência.
E porque é tarde, terei que voltar,
talvez para o antigo e estranho lar;
pois já não penso em perder tempo.

E porque é noite, terei mesmo que partir
e isso não não é abandonar,
é que tenho pressa por seguir
a trilha onde a vida está a pulsar.

Por fim, (não) seria perfeito todo aquele sentimento
e teus olhos de adeus se perderiam mesmo do meu olhar.
Não foi egoísmo, o simples capricho de mentir, desmerecimento...
Os bons passados e os vazios de agora são ofícios do autorrebuscar.

Essas portas abertas, luzes acesas, o amor ardente,
o céu entreaberto, o medo perdido na noite fria...
A dor era outra: o desejo de viver intensamente.
A felicidade era a outra estrada - que de lá não se via.

sábado, 16 de junho de 2012

Diminuto - por Sergio Martins




"Há centenas de planetas imensos nas galáxias incontáveis e desconhecidas enquanto tento encontrar meus papéis e à minha frente, dezenas de frases soltas tentam se remontar nesse pequeno dos pequenos planetas; e isto é o que restou-me de toda a caminhada: ser diminuto. Sou nada mais que um-só. 

Ante à convergência, o equilíbrio e o companheirismo que regem os astros, possuído pela beleza que compõe toda a gravidade e a agudez dessa harmonia celeste, eu desisti de viajar, fiquei cá embaixo à mercê das enviesadas verdades e estranhos convites desses papéis em branco, dessa transparência advinda da meia-luz da madrugada que me reflete - são as vozes do mar que deslizam esse ser diminuto. Sou nada mais que um-só."

terça-feira, 12 de junho de 2012

Soneto para namorar - por Sergio Martins

 


O íntimo da noite é clareza de luar despindo-me a frieza inquietante.
Na cama, muitas vezes canso o e refaço-me a juventude por querer
seu peito quente, sua voz rouca ondeando o mar em sopro delirante,
e então, numa dança ao toque das sombras, temos um só prazer.
A auréola colorida do seio lunar cresceu sobre os capinzais eriçados,
à brisa dos lábios amantes da luz negra - amores descompassados:
o lírio branco sorri aos desvarios de vulcão espargindo alegria
feito borboleta levitando alto, gozando em liberdade e poesia.
Sem assustar-se com o sentimento, o coração fará o dia florescer,
então, dormirá o passado para se acordar junto ao novo abraço:
sentir que tal mundo é o melhor lar, anseio de chocolate e amar.
Finda a euforia, há de se ter a calma dos montes no sol de amanhecer,
num sussuro de gratidão, onde ouve-se a harmonia de tempo-espaço:
Belle Époque e paixão: céu e terra em sinfonia lírica para namorar.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Soneto ao vazio existencial

     

               
No fim de tudo, de que valeu a solicitude e o muito trabalhar
se o tempo que levou o pão à mesa
não conseguiu dar asas à alma presa
que voou como água; que, com as mãos não se pode segurar?

E onde esteve a ciência quando faltou emoção?
Como devolver toda a simplicidade feliz
ao ser adulto e adulterado que, por um triz
da morte, se vê sôfrego, perdido em paixão?

O homem, para encher-se, fez muitos engenhos
de prazer e de dor, mas a poesia lhe oferece
um vazio, em prol do qual, com mil tormentos,

incessantemente, corre e sofre para o aniquilar;
ignorando que o tal vazio é o único meio por onde
todo homem poderá achá-la e assim se encontrar. 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

No fim - por Sergio Martins




Estradas vazias, praias sem luaus,
longe se vão cartas vãs, vinhos, saraus
entre chocolates, queijos, café, curaus...

São flores longínquas sobrevoando este céu outonal,
mares de más marés, cais inquietos, atalho desigual
no chão, no ar, no antes e aqui, a dúvida em pauta,
a saudade em casa traz tua voz ao som da flauta...
a chuvinha molha o rosto, a brisa seca a rua, acalma;
no amanhã mora a miragem, muitas tardes, na alma...

Esvaindo em dores,
vendo horrores,
apreciando cores, sabores e odores,
tremendo de temores,
dias e noites
escurecendo amores...

Já não sirvo (todo só), não posso tudo, só desejo;
por fim, eletrizado, dopado - silencioso desespero
de espera, de busca, de conflito, de cansaço e de mistério,
desisti do inferno mas não há paraíso, só um lindo cemitério.

Se com febre canto, me complica esta alergia,
não tenhas inveja ou dor, apenas alegria
de saber que é com e por você que vou,
que leio, que escrevo, que fico, que sou
amante, estranho, sempre afim,
louco pelo mundo e por mim,
eufórico, depressivo, mesmo assim,
convicto, sonhador, um tanto feliz,
descrente, decrescente, por um triz,
mas sempre no início vicioso de nosso fim.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Miragens de outono - por Sergio Martins




Era um frio crescente no litoral. Eu só esperava vento forte e mar bravio sob o mormaço que o verão esquecera de levar. E quando o calor se foi, pensei que choveria quando subitamente vi ao longe um lençol denso de nuvens escuras se desfazendo enquanto aparecia ao fundo um recorte impressionista de abóbada azul celestial.  No crepúsculo vespertino, a chuva não veio e pela fresta de nuvens, um vacilante e tímido raio de sol refletiu seu brilho no imenso rochedo da ilha como um sorriso oferecido no sombrio existencial, feito uma antiguidade perdida que reaparece à luz de vela no quarto escuro.  

Pensei nas coisas que fazem minha alma sorrir em meio à estranheza do tempo-espaço. E dentre tantas coisas achei uma razão maior para nunca esquecer-me da alegria no mal-humor existencial: a amizade. Novamente as imagens de chuva adentraram minha mente. Fiquei alguns minutos tentando entender o significado da associação que meu inconsciente fazia entre chuva e amizade. Já quase desistindo de entender me veio à memória um dia de calor maciço numa tarde em que eu estava no quintal de casa, quando a cigarra se pos a cantar na mangueira, até que veio a chuva confundindo a pequena cantora que teve seu suicídio adiado. A chuva livrou a cigarra do seu cântico de eterna despedida – a cigarra acaba morrendo após seu duradouro espetáculo. Chuva e amizade. Chuva é a manifestação da amizade divina com a terra: espírito e matéria em harmonia. Amizade é chuva de consolo que nos livra das miragens de outono, isto é, da morte prematura.

No litoral, a ilha que eu via me contava sobre a porção ilhada dentro de mim, maltratada pela erosão; lá onde o outono nunca se vai e parece que o tempo é excessivamente tardio para se refazer em esperança. E assim como a chuva sobre a cigarra e o sol estendido no rochedo da ilha ao entardecer, a amizade sempre surpreendeu meu canto triste ao me fazer entender que "nunca é tarde demais para se dizer bom dia". Lembrei-me do episódio em que eu estava me afogando na cachoeira do Mendanha um amigo conseguiu me salvar.

Ainda no litoral, o céu permanece metamórfico, o mar não estava para peixe e o clima e metafórico; então, ajoelhei-me e escrevi na areia úmida: "sem amigos, vivo aprisionado nas miragens outonais".
Miragens de outono - lugar onde o dia cai com a ventania que leva todo resto
- folhas secas se encontram no destino incerto -
o silêncio não responde
mesmo à beira-mar de um mágico horizonte,
todas luzes, todos brilhos se desconvertem
do olhar, a brisa calma e as andorinhas festivas se perdem,
o porto seguro é invadido pelos temporais,
desaparecem as mentiras sedutoras no escuro: o forte e o cais,
pela névoa, a ilha se vê invisível e ameaçada de dissipação,
nela, as visões sobrenaturais e predadores acham diversão,
as rochas se rendem às ondas tiranas,
o firmamento está em assombro entre estrelas profanas,
a manhã tem granizo e neblina
e só a cigarra entoa a fúnebre cantiga
do amor perdido, da amarga despedida,
da primavera adormecida,
enfeitiçada e enfraquecida
no crepúsculo declinado sob a vida vespertina.

sábado, 7 de abril de 2012

Soneto para o Domingo de Páscoa - por Sergio Martins







O entardecer de recordações trágicas,
as noites glaciais em amargura,
o abandono que abriu a sepultura
nas almas risonhas, festivas e mágicas,

a inesperada despedida do encanto
e o esmigalhar do desejo alcançado
são miragens longínquas, medo rejeitado,
que nos corações estão se desbotando...

É que no domingo de Páscoa, os sonhos ressuscitam,
após o temporal, a beleza habta a tristeza, imutáveis,
a fé e a paz são verdades que não se distanciam...

O silêncio não é dor, e a saudade não é ausência de viver,
porquanto, o olhar arrebatador da vida é amor único e
incontrolável desabrochando o íntimo a cada amanhecer.


Imagem: Google

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Soneto de menina morena - por Sergio Martins

                                             


O tempo afetuoso levou-me à noite gélida e alucinante,
e, semelhante às árvores pantanosas, eu, musgo entre
frutos ilustres, luzi minha alegria no macio ventre 
de menina morena: do seu amor, ao luar fui navegante.

Feito uma canoa que balança presa à encosta do porto,
lembrei-me do poço aberto, do vulcão que se alegrou
nele, espargindo sua semente; e o lodaçal se revigorou,
do tijuco brejeiro surgiu nascente cristalina, fértil horto.

Assisti os capins afogadiços pela enchente lodeira do riacho
exaltados e livres; debaixo da grama florescia a vida como
voo desamarrado do olhar, ervas em revoada no áureo facho.

Porquanto, ante às graças veraneias, o que sufoca o chão suburbano
não são as nobres pegadas que se foram ou as pétalas abatidas que 

ao sopro bruto fogem, é a raiz que rasga - o broto lindo e desumano. 

domingo, 25 de março de 2012

Outono - por Sergio Martins



 



O agito de um ar tropical entoado para esconder o silêncio da verdade em meu íntimo, parte juntamente com o sol maior; de sorte que posso ouvir uma alegria especial longe das batucadas de desespero; é a vez de a orquestra calma musicar o ambiente para eu me aproximar de mim mesmo. "Outono é isto: queda de temperatura. Nele, "há um cair em si" que nos induz à ascensão. Parece que o mundo decai para que sintamos seu peso e nos é revelada sua nudez: espelho pelo qual vemos e nos aproximamos do "ser-si-mesmo."

Sem o assédio do verão que castiga minha pele, exige sacrifícios como a devoção ao corpo para nutrir a tirania da beleza exibida nas praias e que torra toda a poética do meu ar com aquela correria pela estética fabricada, posso, finalmente, voltar a ser. O verão é um moleque peralta. Vive sorrindo, se diverte ao dia em alto som e danças, está a mil por hora, seu compromisso é com o momento-prazer, por isso, não acha tempo para refletir. É óbvio que no outono íntimo também podemos provar de uma deliciosa e calórica euforia, mas é uma sensação verdadeira que não depende de calores sedativos, de maquiagens, vitrines sorridentes de fama e sucesso para camuflar a vocação para o fracasso. Com isso, aprendo que o que me dói no verão íntimo não é a verdade, e sim, a mentira, pois a verdade do outono é a oportunidade que encontro de sentir-me perto de mim mesmo através da necessidade que vem da dor; dor provocada pela solidão; solidão amiga. Ora, se a dor do corpo também é a dor da alma, logo que a tal dor nela se aplaca, lembramos que temos uma alma – corpo imaterial– tão frágil como a própria existência; e geralmente, só passamos a valorizar as coisas e as pessoas quando nos deparamos com a dor ou a perda das mesmas.

O outono me causa dor, sensação de perda. As folhas guiadas pelo vento me lembram que estou dentro de um mar aleatório em que navego nas indisponibilidades divinas, o frio que sobe o corpo é vida brotando na mente, em tudo mora uma saudade, as mensagens de despedida estão em tudo que vejo: no espelho não enxergo a certeza que os anos seguem uma correnteza veloz, as fotos, cada uma delas é um retrovisor me contando histórias, mostrando que o número de velas do bolo de aniversário vão se aumentando – a vida se apagando para iniciar outra vida –, falando de tempo perdido e provocando a intensa aflição pelo reconstruir... É a infinita dor pela qual encontro, todos os dias, o significado de minha existência.
A baixa temperatura reflete a queda da máscara carnavalesca de verão que mora em nosso eu interior – caímos na realidade, a mentira que dói inexiste, só há a verdade que consola –, e é justamente nesse fundo de poço que conseguimos nos encontrar: no caminho árido da cicatrização das dores da mentira; é o lugar onde podemos adquirir as belezas plurais dos infortúnios. O verão me engana ao trazer a ideia que possuo uma juventude invencível, sou aquecido por uma sensação de imortalidade, ignoro meu imenso vazio superlotando meu tempo como uma inútil terapia para me livrar de mim mesmo. O outono é um prolongado crepúsculo da tarde me dizendo: a noite vem. É um labirinto inevitável e enigmático, é a ausência do "eu-na-turma", é sinfonia apaziguante, é a certeza de caminhar livremente, a paz concebida após anos de guerra, é a idade avançada que tem a sabedoria como experiência pessoal... 
Ao findar o mês de Março, vemos a velhice nas coisas e pessoas – é a nova estação revelando tudo aquilo que é velho em nós. A velhice mortifica certas vaidades, acende o cuidado de nos apegarmos ao significado de ser, a ânsia pelo futuro promissor e as desilusões são postas lado, o medo do escuro não aparece pois estar a sós consigo mesmo não é mais fantasmagórico, e porque suportamos nossa própria presença a sós com a solidão amiga, podemos conviver em harmonia com o mundo pois já estarmos convictos que a solidão não representa o estarmos sozinhos, mas é a ausência de um sentido maior que nos faz sentir sozinhos ainda que bem acompanhados.

A juventude é um dia claro e grandioso, mente fervilhante e inebriada pela fantasia, agitação descontrolada, multidão reunida para curtir o Rock in roll, a escuridão não pode ser contemplada. A velhice possui uma beleza diferenciada, a magia não convencional como a escuridão da madrugada onde habitam as estrelas, os milhares de pirilampos, o mar negro de altas ondas. É o universo quieto reverenciando a mestria divina, é nela que gozamos de um bem estar infinito, a sorte de se viver um dia após o outro sem se cansar com atividades desnecessárias...

O outono chegou! E lá se vai toda aquela ginástica pelo físico perfeito que doloria o dia-a-dia dos fracos, a acrobacia de termos que achar tempo para ficarmos ainda mais sem tempo, se finda o Stress, o barulho urbano que produzia dores de cabeça, o sorriso obrigatório e sem graça para mostrar aos outros que se está bem, a fadiga pelo desespero capitalista dá lugar para o descanso onde se é possível ouvir o pulsar do nosso coração, o trabalho é capaz de ser um meio para chegarmos cheios de atrativos ao lar doce lar com as pessoas queridas, as festas estridentes com fogos de artifícios para conter os clamores da alma não são mais úteis, sobra tempo para sentirmos o abraço do casaco, a fogueira no luau, um bom livro, a exposição de artes, o bom filme assistido com ser amado...

No outono, vemos que o lugar da queda é também onde acontece a ascensão: a perda da euforia trazendo a razão, o rompimento de um prazer levando a saudade e trazendo novos sentidos aos nossos trajetos, o fim de uma alegria para a entrada de uma desconhecida felicidade... Outono é esta mescla de sentimentos estranhos e belos: saudade. Estranho pela queda e belo por ser ascensão. Pergunto-me, então, se existe outra razão pela qual o sol venha se despedir senão aquela que faça a noite sobreviver, as estações que com seus brilhos e cores próprios enchem de prazer e saudade os olhos poéticos. É aí que acho o significado de minha vida: no prazer. O prazer outonal não vem de propagandas enganosas de realização pessoal, não existem motivos para absorvermos alegrias instantâneas e fúteis de verão, o dia é findo, não há necessidade de mantermos uma imagem de campeões, é admissível assumir nossa vontade-necessidade, longe das luzes do palco hipócrita conseguimos observar nossas rugas – acabou-se o bronzeamento, a palidez retorna à minha face – e compartilhar um pouco daquilo que realmente somos... O mundo está entardecendo, as vistas se escurecem pela velhice e enxerga a existência com mais clareza: sombra mais forte, verde mais verde. Na noite é permitido ser quem realmente se é, na sensualidade das madrugadas mora o prazer de uma sinfonia silenciosa; lá onde a verdade está disponível para libertar nossas emoções... Há coisa mais triste e ao mesmo tempo tão alegre do que sentir o outono desfolhando as páginas do nosso inconsciente, fazendo do vazio um companheiro gentil que nos ensina a preencher nosso interior com o que vale a pena, da desocupação algo fecundo, pondo em dúvidas nossos conceitos, revirando nossos valores...? Como não enxergar que são estranhos e belos os raios solares enviesados e inibidos na campina dourada que se inclina pelo afago do vento, as enormes nuvens que vem e vão criando e desfazendo imagens rapidamente... O vento à tardinha enxuga o olhar visionário... O frio são lembranças descongelando – e a saudade é a velhice em nós– rumos desiguais, a boa infância abandonada, partidas sem sentido, noite delongada que denuncia o retardamento; a lua está próxima demais, a lua que minguou pelos olhares indiferentes é a mesma que preferiu estar cheia de sorrisos, grávida de amor e perdão; e em sua presença todos se enchem... A maré transborda de contentamento, o olhar da donzela recebe um gratuito prateado, o coração fragilizado se faz repleto de uma nova paixão... É com essa sábia velhice que me encho de beleza para florir o meu jardim, fazer feliz a quem eu amo. Velhice é outono sem fim, é crise de um prolongado crescimento. O tempo, na velhice, confirma o amadurecimento: arte do eterno aprendizado. No olhar dos velhos ouço um sossego que me aconselha a ouvir mais. A entender o silêncio. No ar rarefeito do clima de montanha fluem soltas e suaves as palavras dentro de mim e o sono tranqüilo me vence na rede da varanda... O amor é a fogueira que se encontra mais forte para criar a arte escondida na escuridão – a luz no fim do túnel, queda e ascensão – são desfolhagens colorindo e abrilhantando as telas dos pintores: as folhas vão se reencontrar pelo chão, chuvinha constante que cura a terra, natureza em autoreconstrução. Bate forte a saudade, algo se foi. No entanto, num piscar de olhos se percebe que as roseiras pelas ruas continuam floridas, os Bem-te-vis eufóricos nas mangueiras, o canto mágico e solitário dos Sabiás, os Pardais refazem seus ninhos, o prazer passa a habitar no momento chamado agora, o dia de hoje recebe o nome de melhor presente... Pelas ruas, some o vai-e-vem desordenado e o monóxido de carbono, a calma é divinal.. Há o vagar de um pântano tenebroso à sinfonia de um olhar que em tentando segredar-se, mais transparente se faz... Sobe a pequenina bolha de sabão da menininha que correndo atrás de sua obra flutuante me ensina como se cria um mundo intocável, leve, simples e esplêndido. A bolha estoura. Ela grita. Eu suspiro fundo e fico em silente, pois na perda do prazer até o emudecimento é terapêutico, mas o mundo flutuante que a criança idealizou não deve ser abandonado... Aí, o tempo me faz sentir que é hora de superar a dor, aprender com a saudade, rebuscar o prazer, cruzar os mares estranhos e belos. É o outono me chamando à última valsa todos os dias...

segunda-feira, 5 de março de 2012

Fervura de menino - por Sergio Martins




No fim do dia abre-se a flor tardia
e já sem sono, longe vais do que te perdia.
Antiga, a clareira de céu se estende na varanda;
nova é a mensagem sempre à frente desse olhar que ciranda
entre goles de aguardentes, violão – profana poesia,
em desatino confesso – faceira e sagrada boemia.
Calmaria de Março depois do barulho,
ondas incessantes à dormência de marulho.
O café quente com cigarro e mais um livro;
ao estalo da vitrola desliza a chuva no vidro.
No crepitar de fogueira as páginas incineradas,
desejo ímpar, alegrias íntimas, luas enamoradas.
Linhas frias de caderno, fervura de menino em liberdade,
brincadeira de (ser) Deus, rascunho e perfeição da vivacidade.
Na boca da noite se fecha o gris que ardia
e já em sonho, podes ser você mesmo: canção vadia.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A cena muda - parte 4/ final - por Sergio Martins




No último ato da peça teatral tudo parou. Aconteceu uma reverência mútua e num silêncio que se manifesta nas catedrais após o canto do sino à entrada da noite; deu-se a nota de falecimento: a atriz abriu os braços e recebeu aos beijos o seu homem acolhendo-o como se recebesse o seu bebê e dessa maneira, embalou o ar da plateia aos festejos de quem recebe a tão esperada notícia. Em comunhão com o sentimento dos espectadores, enchi meus pulmões para acompanhar o último suspiro da cena muda que ficaria gravada em minha memória qual vinil arranhado repetindo o bom refrão.

Entretanto, o que enxerguei naquele último ato foi a possibilidade de uma existência livre das tragédias românticas de Sheakspeare. São cenas mudas como estas que falam por si só como a própria arte que não se explica mas que existe apenas para ser degustada, que vez por outra aparece como um ponto de luz em nosso desengano e nos convence que a vida, até mesmo com toda sua beleza triste, parece mover-se numa tentativa de eternizar o prazer de uma adolescência enamorada pelo feitiço; norteada por uma felicidade singular.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A cena muda - parte 3 - por Sergio Martins





O andar da moça sempre acompanhado pela leveza de seu sorriso se contrapunha a todo azedume de cidade grande; na verdade, ao passo que um rebuliço cardíaco me sufocava, todo o seu corpo e sua feição pareciam sorrir igual contentamento de cão guiado pelo seu carinhoso dono. Naquele feitiço, eu tive a sensação que o ônibus se aproximava do mar e inalei a maresia, ouvi marulhos sinfônicos de sereia e perdi-me num apetite desordenado de correr pelas areias da Barra da Tijuca, encontrar muitas pegadas além das minhas e que caminhassem junto aos meus pés. Subitamente, olhei para os lados na intenção de me recompor daquilo que até então parecia surreal e vi que um velho abriu a janela e deixou o sol lhe tocar para apreciar melhor a cena espetacular. Afoito, chegou até mesmo a lamber os lábios com muito gosto, procurando, talvez, sorver o paladar das boas épocas em que a calda de pêssego deslizava em sua boca pelos lábios da mulher amada.

Houve também, no olhar de alguns o parecer frio e insosso dos críticos de arte que se esforçavam em ignorar a mestria daquela poética como se pudessem, num ato de coragem, de desespero, de covardia ou de pura crueldade driblar toda a vida e toda morte inevitáveis advindas do lado de fora.

Até que a lotação se adiantou cortando a cena igual cortina que desce sobre o palco anunciando o fim do show. Bem que tentei evitar o fim do prazer curvando-me o corpo e girando completamente meu pescoço para trás na ânsia de não perder o restante daquela graça ameaçada pela pressa do motorista; mas não teve jeito, viriam mesmo as chuvas de Março após o carnaval. Acabara-se o espetáculo e veloz, a condução foi engolida pela ladeira; o que acometeu meu estômago de um afago gélido característico de minha infância todas as vezes que a caminho da escola, o motorista acelerava a condução antes de descer a imensa rampa para o meu salto de alegria. Quanto prazer eu tinha em toda aquela geleira estomacal!

A cena muda - parte 2 - por Sergio Martins



A trama do destino apareceu no teatro a céu aberto de uma calçada qualquer feito amor que é pipa guiada pelo vento e que está sempre no ar pronto para ser agarrado. De imediato, uma sombra cobriu todo o céu. Depois vieram os raios solares. E sorrateiro, um vento pareceu abraçar-me trazendo memórias de pipas. Assim que toda aquela escuridão foi desfeita vindo em seguida o sol e o vento, surgiu detrás de uma pequena cortina de sombra uma bela mocinha dos cabelos esvoaçantes e lustrados de um prateado matinal. A atriz principal vestia short jeans, chinelo e uma elegante camisa do Botafogo abrilhantada com sua estrela solitária aos requintes da última moda. Ela vinha caminhando aos passos adolescentes, movida de dança e sorrisos como fosse uma exultante monóloga. Parecia realmente feliz como toda loira deve ser, demonstrando indiferença à aflição adulta e urbana. Era assim que seguia seu caminho florido de criança rumo ao parque de diversão. Por ser tão original, a atriz tornou-se um destaque espetacular capturando a atenção de todos semelhante a um luzeiro na imensidão sombria; um jardim encantado atraindo os pássaros e as borboletas. Tão logo recebeu os olhares sôfregos de desejo que os rapazes costumam sentir e apresentar como aplausos  de gratidão quando se veem diante de tal formosura.

Os carros suscitaram seus faróis piscantes, as luzes coloridas das lojas e as buzinas ovacionavam feito um coro jubiloso à estrela maior que seguia distraída, porém, compenetrada no seu trabalho voluntário naquele tipo de arena popular. Tratava-se de uma fenomenal contribuição à arte lírica.

Apesar de sentir-me agradecido, continuei estático, perplexo, de olhos fixos no novo e mágico mundo da mulher-menina, até que preocupando-me em não demonstrar má educação, alarguei um sorriso em sua direção a fim de presentear aquela brisa refrescante em meio ao mormaço de verão.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A cena muda - parte 1 - por Sergio Martins




A segunda-feira fora arremessada à fervura típica do verão carioca. Dentro do ônibus, a volta do trabalho pra casa se dava ao luxo de uma ambiência relaxante e calma sob as cores metafóricas e metamórficas do crepúsculo vespertino.

O primeiro dia útil da semana com seus muitos encargos, geralmente, não se assoma de eventos dos quais possamos classificar como significativos. E por ser assim, traduzia-se em nada além de mais uma data onde a rotina e o cansaço são interrompidos pela euforia dos amigos comemorando mais um título do Botafogo que gloriosamente punha-se em destaque nas capas de revistas e jornais pela conquista de mais uma taça Guanabara; infelizmente, sobre o Flamengo, que em minha absurda opinião de torcedor é o melhor time do mundo.

Havia também outra conspiração em enfeitar aquela segunda-feira de um adorno especial, é que ao longo das avenidas via-se um intemporal florescimento de ipês amarelos que embora inibidos, revelassem apenas suas copas desprovidas da fartura primaveril conseguiam despertar em mim uma irradiação de simplicidade e extraordinário e de divindade e humanidade através de suas esplêndidas e florescentes luzes. Vendo aqueles seres tão vivos, monumentais e dançantes em meio à balburdia costumeira dos transeuntes, compreendi que sendo lógico, isto é, um pouco mais racional e naturalista, me cabia bem ser ateu, mas em presença dos ipês sinto mais fortemente o feiticeiro e o poeta que habitam meu íntimo. São eles, o feiticeiro e o poeta, que mergulham meu olhar em direção à vida e ao mundo em luzes e cores encantadas, de maneira que sou levado a ver “estórias” por trás das histórias e imagens segredadas nas coisas e pessoas que mais parecem falsas vitrines tentando driblar minha visão e, portanto, estou assegurado a caminhar na contramão do ceticismo. O fato é que sou todo avesso mesmo e contra isto não há lei nem freios, pois a razão de eu ter fé está para além de minha própria compreensão e o lirismo todo dessa crença que vez por outra se ofusca por conta das marés violentas, acaba por desembarcar no cais de um pequeno detalhe do dia-a-dia, como por exemplo, um capricho divino no qual meus olhos se embriagaram quando um repentino e ligeiro engarrafamento de certa avenida repôs fôlego ao meu corriqueiro vazio existencial.

Pois bem, era uma segunda-feira na calmaria relaxante do tremulante assento de ônibus onde eu jamais iria supor ser meu divã até que, breve e marcante como um relâmpago que deixa seus rastros de destruição, ocorreu-me o que há de permanecer em mim semelhante aos amores lendários e trágicos e as grandes e históricas felicidades indisponíveis ao esquecimento.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Soneto à viola acidentada por Sergio Martins





Desde fevereiro, corpo saudável. Alma inebriada.
De incansável e grosseiro dedilhar do destino,
suas cordas quebraram. Realidade em desafino.
Suas notas sorridentes em elegias perpetuada.

No enterro do carnaval, voltam-se ao caminho:
Baião, Forró e alegrias de antiga Bossa Nova.
Mas na esperança sob a desgraça em voga,
a viola acidentada içará seu último Chorinho.

Entre saxofones luxuosos, máscaras festivas,
eufóricas percussões e flautas orgulhosas,
sua imagem apagada que brilhava nas avenidas.

Suas fantasias em desencanto, emudecem sem as rimas.
Na beleza da folia que não transluz felicidade,
a viola acidentada mora na quarta-feira de cinzas.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Taciturna - por Sergio Martins

                          
                   

Durante a manhã há sombras melódicas em teus olhos,

nos dias nublados você fica tão inebriante e sedutora 

quanto a morte que degustamos num Réquiem de Fauré.

Quão bela é sua aparição nas fúnebres ruas:

o vestido preto, a sombria maquiagem desfeita pela chuva –

fotografia do mundo falecido– rara flor da noite!

 

Não quero o colorido passado, o céu ensolarado nos irrita,

e já desconhecemos o dia; pois só acordamos à noite

para dançarmos o lunar madrigal

ou a ópera carnavalesca das assombrações. 

Almejo a rouquidão, o fumo e o uísque de tua boca:

ao doce do teu batom preto, meu apetite vampiresco.

 

Foi numa madrugada que conheci teus nefastos carinhos,

uma ventania gélida precedendo a brisa quente,

que me arrepiou todo o ser,

e me soprou aos ouvidos o meu medo mais profundo, 

antes do temporal despedaçar toda a vida que eu conhecia:

o medo de morrer, na verdade era apenas a frustração de

não realizar o desejo de viver tudo o que eu sonhei.

Em meio às brumas você apareceu tão tenebrosa

e irresistível como as catedrais góticas, e me tocou:

acordes sonâmbulos e desesperados do meu ser!

 

Você necessita do meu sangue e da minha carne, 

eu tenho muita sede de suas lágrimas e fome de sua tristeza,

pois minha felicidade é também é a sua:

ter o nosso amor – que é de morte.

 

Minha amada taciturna, seremos só eu e você nesta sinfonia fantasmagórica:

assistir o teatro dos horrores, plantar rosas murchas no jardim doente,

inebriar à lira sinistra do inverno...

Nosso mundo será eternamente este solitário e belo cemitério,

ao som de suas canções melancólicas ao violino.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Vermelho - por Sergio Martins






 No feitiço dos meus olhos mora uma sedução que não se desprende.

Tudo o que vejo nesse espelho é a partir de você.

Meu olhar te segue.

Por que antes mesmo que minhas pálpebras se abram ao amanhecer, no teatro do meu desejo inconsciente, desce a cortina onde me deleito em sua luz cor de sangue e enigmática?

Antes de qualquer imagem, minha retina enxerga primeiramente a beleza de sua meia-luz escarlate onde há uma força, um sobressalto do tempo-espaço, tal qual, fogo repousado e breve no céu do despertar matutino - onde mora a lembrança dos sabores de frutas vermelhas.

É de Marte e de morte esta vermelhidão de entardecer que me sorve numa estranha poética: caminhar a esmo na escuridão, ver tua sombrar amigar-se aos meus passos, estar ao seu lado olhando as estrelas, ouvir o agitado mergulho de Fevereiro em nossa noite lírica; perder-me de vista no encanto do teu rubro mar.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Postagens mais visualizadas