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terça-feira, 23 de novembro de 2010

É primavera! (versão político-social completa) por Sergio Martins

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Outra vez o céu anil se estende sobre as árvores favorecidas pelo orvalho de uma madrugada nebulosa. À música encantadora dos pássaros, cintilante manhã se espreguiça sobre os primeiros e ressurretos olhares. Nova manhã, novo ser, olhar único e ansioso qual flor inocente, sequiosa pela luz. A criança afoita que mal dormiu pelo afã de  divertir-se com tudo o que é simples, salta dos sonhos e voa para saborear o crepúsculo matutino. Os movimentos matinais se abrem no brilho de seus olhos, a lua branco-gelo do dia se inibe no azul clareado, os raios fluem de trás do monte, tingem as flores, realçam o verde, apaziguam a ânsia, trazendo a nós a sede de se apaixonar de novo, a força para sair do medo, de reaprender sofrendo apenas pelas razões certas, de festejar a chegada do dia – presente divino – com um sorriso infantil...

A esperança que demorou se pôr fora do exílio adoentou demais a alma jovem, mas a madrugada foi vencida, agora, a arte de amar é forte raiz na alma que, enfim, volta ao seu respectivo corpo... O orvalho encontrou a terra árida e ao seu toque gracioso o grão de trigo ressuscitou, velejou na alegria sonhada, os pássaros aparecem, as flores se fortalecem, as crianças se divertem, os dias se enobrecem... A Senhora do florescimento vem... E degela-se o pico da montanha, convidando as gaivotas e fazendo o colorido brilho na imagem que se embaçou pelo mal tempo: por ser despertado, o amor foi correspondido...

Mas a clareza matinal não afasta o silêncio dolorido se abrindo no semblante das pobres famílias habitantes de um mundo-casebre prestes a desmoronar na degradação imposta pelo tempo... O drama silente evoca lágrimas de quem acorda tarde por não ter conseguido descansar na impiedosa madrugada... Os sorrisos já não prestam, os abraços são inúteis, a esperança das preces foram malogradas pela inveja dos deuses – do Planalto Central – que se encolerizaram com a felicidade requintada de um povo simples. Os desolados, são velhas almas penadas debruçadas nas janelas vendo a exuberância ostentada no céu do crepúsculo vespertino que logo morre ao toque da realidade que mostra o fosco de um olhar indiferente para toda a pobreza que o cerca...

Nas calçadas, os bêbados repousam confundidos com cães doentes e abandonados, pelos becos, as crianças de rostos aflitos são as mesmas que se divertem com o vento que as levarão para os redemoinhos onde a adolescência rebelde e sem fim se conformará em não questionar sobre o sentido de viver; e acontecerá, então, no íntimo de cada uma delas, a crença de que só a morte do corpo eliminará todo o sofrimento da alma...
E em mais um dia frio desse mundo confuso, me encontro triste e esperançoso, preferindo ter fé que muitos apenas tentarão descansar seus respectivos corpos por causa da descrença num bom clima de suas emoções, já outros, hão de sonhar antes mesmo de dormirem; mas enquanto houver quem sonhe, quem lance sementes sobre a terra sequiosa, não se poderá esconder o raiar do sol primaveril, pois havendo sonho, a verdade maior – a poesia eterna – , se fará presente na calma fúnebre de um lugar esquecido, na vontade de viver mesmo com todo o pesar (do autoengano) de nada ter, nos acordes de violão embelezados pela solidão, no bebê que recebe o amor materno, nas lições das aves, na lembrança da pessoa amada que viajou para longe, na chuva que traz o pão à mesa, na solidariedade compartilhada entre o povo sofrido que é apaixonado pela sua terra, no olhar de Jabuticaba brilhante da madrugada sedenta de prazer, na frágil convicção de um amanhecer afetivo e até mesmo no silêncio ingrato sobre quem tanto espera o porquê de todo mal ou no paradoxo da estranha felicidade que vem da beleza triste e que todos os dias vai morrendo só para nos fazer vivê-la de forma intensa... Tudo para que no outro dia, tudo se repita: por trás da colina o sol acende a manhã colorindo a rotina do campo... A cigarra, deitada num galhinho da macieira proclama: É primavera! A dama com seu novo vestido florido passou abrindo um sorriso tímido entregando (à luz dos seus olhos verdes) o sinal aberto para o violeiro que viu a canção viva retornar à sua inspiração...

Depois do mal-humor do mundo, o universo acordou tentando agradar a todos ofertando a promissora estação em nosso altar... É o prenúncio de coisas boas, evento simples e extraordinário: a visita inesperada de um amigo que deixou muita saudade ao partir, o bolo que sai do forno, o prazer com que a amada corta os legumes frescos e a carne, a sopa na mesa, o vapor da panela exala o perfume da comida saindo pelos ares, a festa que é feita sem nenhum agendamento somente para comemorar a graça de se estar - bem...
É primavera: folia que permanece no olhar... A beleza é recriada nos olhos de boa percepção: as pedrinhas do rio, as flores secas, as sementes, os galhos em brotos, o algodão, o retalho... Tudo vira arte, é pintado, vira artefatos decorativos e acessórios... É hora de retirar a poeira do piano e saborear a música romântica... Observe as flores do Pinheiro, a rosa desabrochando, sinta o perfume do Jasmim, a dança da flor branca do maracujazeiro - erotismo natural! A vida está se rendendo à sedução primaveril, o ar se mostra amoroso na face risonha da moça que se move na leveza de um pássaro, nos gestos afetivos e nas dóceis palavras; sua pele seca é banhada de orvalho, seus nervos contraídos são relaxados, o rapaz enamorado tem alma campesina, coração fertilizado para sua flor e água na boca pelos seus grandes lábios, pela sua língua doce feito menino sedento por amamentar no seio materno... A euforia e a sensualidade estão soltas por toda parte, o romance é fecundado, o amor dá a luz, os Cactus do sertão florescem e dão de beber aos espíritos sequiosos... Primavera é florescimento. É como a gravidez na velhice: esperança que não se perde.

Os Lírios estão esplêndidos nos tenebrosos vales, o morango ainda brota no penhasco, no barro outrora enlameado saltam raízes, ervas e capins, o jardim concebe toda a atividade normal para o seu sustento... O coração está sorridente, cheio de prazer pelo desejo alcançado, a expectativa demorada não enfraquece mais os ânimos, pois ainda há o poder de conquistar várias vezes a pessoa amada, o mar está convidativo, a paixão é insinuante e possível, o disco antigo com as músicas extasiantes foi achado, o filho deixou de ser pródigo para estar em paz no seu lar-doce-lar, é a volta do trabalho para o contentamento da família, pelas manhãs, a suavidade é inalada, a amizade renasce depois de muitos erros cometidos e perdoados, após a melancolia duradoura a noiva volta ao altar com seu mais belo vestido, a garoa enobreceu a tardinha no dia ensolarado e fez-se o arco-íris, é sol e chuva – casamento da viúva!

"Após a guerra, as crianças dançam sobre os destroços, cantando unidas em cima dos tanques destruídos, fazendo brinquedos com as cápsulas e os restos das armas derrotadas pelo chão....

O mundo está farto de dor e ódio, as mãos estão unidas para liberar a sorte de todos, o universo é parte de todos – casa comum –, depois do temporal, a reconstrução da casa, depois do aborto e perda, o nascimento, a conquista...


E quando achamos que a frieza existencial nos levou tudo de precioso e que não existe mais nada que possa nos tocar a emoção, a primavera chega; exaltando o sagrado encanto na magia extravagante dos ipês, trazendo surpresas agradáveis, ressuscitando toda a graça do nosso caminho, a história de amor recomeça, resistindo aos ataques, triunfando sobre a ideia que a morte é um fim definitivo. Detrás da colina o sol reacende, dourando as campinas com seus raios oblíquos e purpúreos, ouve-se a festa das cigarras, os crepúsculos se tornam mais jovens, as amendoeiras nos presenteiam com o lindíssimo mar de bronze de suas copas..."
Pintura: A primavera de Monet

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