Páginas

domingo, 26 de agosto de 2012

Do que me encontra - Sergio Martins





Andei pelas ruas de flores, de luzes e de sombras tentando oxigenar minha alma, mas o céu moveu-se excentricamente e fiquei inerte sob a cortina de nuvens qual ostra presa aos rochedos. Agora, no firmamento sombrio está minha imagem: embrulho sofisticado e bem-humorado ocultando tempestades. As nuvens são belas mas abrigam cargas elétricas – é o olhar brilhoso que esconde lágrimas límpidas e vivificantes... E se o vento forte leva o mal-humor desse clima, continuo sedento, enlaçado nesse tempo-espaço: a ânsia aumenta o tempo, o tédio encurta o espaço – são ventos aperiódicos adiando a sorte... Se a chuva me tocar, grânulos prateados ecoam de mim – choro que desce feito lampejos, ideias germinam em alta velocidade como torneira derramando amores salubres, canal onde deságuo meus reclames... E depois, no espelho líquido e ondulado desse chão barrento contemplo o firmamento parcialmente azul: azul-bebê recém nascido sobre o berço de nuvens alvas e acesas: meu rosto clareado no tempo renovado desse espaço composto pelos fragmentos de escuridão e de beleza – é meu campo nutrido, minha sensação de dever cumprido. Partida e chegada desse raro e leve sentir... Mas ainda vejo uma criança longe de sua mãe: a boa mãe que eras... Em todo caso, entendo que toda essa terra firme é mentira, dor, ilusão... E só o mar inconstante – de seus olhos – é o lugar em que não consigo desencontrar-me.


sábado, 25 de agosto de 2012

Num certo Agosto - Sergio Martins






Num certo Agosto, foi correta a rua em que seguistes...
Entre palavras nossas e a boa janta, de sangue foi o vinho que bebemos desde que as alianças quebraram na noite ao luar.

Após a devastação da segunda primavera ainda brotam flores no Jardim Novo: o que foi aquele túnel pelo qual chegamos numa outra rua e conhecemos a nova luz? E quando se fará reviver a estrela da flor de Maio?

Você contou-me o que eu sempre soube: seríamos pintura encantadora e saudosista - imagem envernizada que reproduz brilhos e cores amoráveis. 
Foi fotografia: memorável momento permanente na memória...

Mas por sorte nossa, a contrarregra divina havia de ser magia: o desatamento de nossos nós não era fuga da felicidade; fora e é, simplesmente, o amor em liberdade que desencadeado do medo, acabara de enxergar com estranheza todo o belo do seu eterno e prazenteiro norte. 
Num certo Agosto, o que era incerto tornou-se o meu caminho melhor...
Ainda hoje lhe sorrio agradecido...


sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Alegria de menino - Sergio Martins




Hoje não tenho mais só um travesseiro pra abraçar...
Outra vez vou à floresta sentir a chuva me beijar...                                                          
Sou mais feliz em não ter
que ansiar ou reter...
Pela manhã, é nova a janela e o quente de você
no feixe de luz, chantilli, café com bolo sem glacê...

É esse dentro e fora do aprender a arte de viver
e de fora pra dentro um fogo, um mar a amanhecer.

Não precisamos esclarecer o que iremos fazer pra calar
toda aquela dor sem valor que entristece o luar;
pra reaver nosso amor, sem temor e pra sempre sonhar.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O jogo - por Sergio Martins





Acreditando na minha verdade o caminho se tornou absoluto,
na ambição de percorrê-lo iniciei o jogo com euforia:
comprei flores do campo, momentos de intensa alegria,
mergulhei no imprevisível e o rio se estreitou, secou-se no luto.

Apostei tudo na cartada final: barulho de um agitado mar,
vesti-me de veludo esmeralda dos montes, ganhei sensações,
fui amante da noite, a ligeira liberdade abriu seus portões,
possuí a garantia falaz das Glórias das Manhãs* amando seu ar.

O tempo desmaiou, a sorte passou, fiquei inerte no palco,
no eclipse lunar a arte se apagou, colecionei muitos ventos,
naveguei em brumas, estudei fúteis estrelas e monumentos
e o jogo acabou; pois todo jogador, do jogo é o único alvo.

Na solidão com vultos e sombras fotográficas, fiz-me todo cansaço,
parei de jogar, mas o jogo lançou-me no avesso da existência,
senti o cheiro da poesia e não adquiri a beleza de sua essência;
a farsa acabou, restou-me farelos do prêmio que havia conquistado.

As Azaléias murcharam, provei nuvens de algodão-doce, em vales vaguei,
perdi os sonhos, as riquezas da vaidade, me empobreci dos medos,
entreguei-me à desesperança, o destino saldou a dívida dos meus erros,
a ânsia pela vitória sumiu. Meu jogo é o "aqui-agora'. Nele, a paz encontrei.

* Glória da Manhã é uma flor que tipicamente dura uma única manhã e morre à tarde. No entanto, novas flores desabrocham todos os dias.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Certeza rotativa - Sergio Martins





O coração é só este este mundo fantástico, abrigo da paz inventada, oceano bravio ou desfiladeiro sinuoso?
Nosso sonho é a riqueza de poucos. Nele, vejo meus destroços, jovens abandonados, sobreviventes da arte maior.
O Amor que nos une é um engenho prazeroso, belo piedoso, bem duvidoso, remédio perigoso, cura mortal.
Poesia: universo do brilho sem fim, sedução falaz, êxtase ligeiro, vício apaixonante pelo qual agoniza minha alma.
Toda a nossa vida é uma graça irrecusável, um dom coercivo, lágrimas que meus olhos tentam esconder, justiça desamparada, esmorecimento que os sábios fogem, catedral das sensações, o eterno desbravar na obscura imprevisibilidade.
O amanhã parece ser o que nos espera - realidade mal-humorada que, à força, nos conduz à aflição da certeza do indesejado.
Toda esperança apenas é um atirar-se nas imprevisibilidades sem a preocupação com as indisponibilidades divinas; porém, ela, a esperança, não nos assegura que a realidade mudará e poderá nos arruinar.
Você disse que o mundo é um suposto porto seguro e eu perguntei novamente: onde estamos...?

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Soneto para uma florezinha estranha - Sergio Martins

                                                                    


                    
      Oh! florezinha simples, enigmática, linda e dormente,
      que a bailar com o vento enxuga o meu olhar,
      conceda-me o despertar com as líricas no falar,
      pois, sujeito rústico que sou, assim me faço contente.

      No orvalho da campina em que juntos nos molhamos,
      o brilho calmo da beleza matinal nos vem saudar,
      mas tão logo se evapora, então, posso me consolar
      com tudo de mais estranho e normal que pensamos.

      Em ti jamais encontrei espinho maior que o nosso amor,
      porém, quando em teu perfume não pude mais flutuar,
      em sua leveza senti a força de tua defesa em minha dor.

      Oh! florezinha simples, enigmática, linda e dormente,
      para tudo complicar me envaideci - sou todo orgulho,
pois, em sua arte a graça não susteve o “eternamente”.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Passarinhos - Sergio Martins






Desprendido de si mesmo e vagando de um monte a outro, o pardal busca seu novo lar decorado por mato de ervas e Lírios... Naquele quintal  – ninho-doce-ninho  –, aninham e se divertem, longe do medo, toda a alegria simples e cotidiana dos capinzais – são encantos florais diante dos seres de luz – são navegantes de todo canto – canção eterna, espécies angelicais, nuvens coloridas, ventos calmos, feixes luminosos cortando o céu, raios perfurando o ar, adornando árvores, inspirando amores, contando histórias, mostrando caminhos...
Naquele quintal, Periquitos decolam em pequenos voos da jaqueira às florezinhas rasteiras, das roseiras veem-se os Tico-ticos, as nobres e orgulhosas Azaléias, Margaridas e Violetas juntas ao gramado dos Quero-queros; elas crescem sob o abrigo do João de Barro, a manhã solta ao vento, realçada ao sol de um   eterno primaveril abraçando o tempo existencial de todos, despertando sorrisos, saltando agradáveis surpresas aos olhos infantis, redescobrindo a beleza no v elho e cansado corpo – é a manhã do alívio na alma que esperava a liberdade de voar – são outros, transcendentes e diurnos pássaros trazendo a capacidade de sonhar mesmo já sendo tarde demais nos ares desse inverno  – Rouxinol de boas novas, mensagens de um mundo encantado talhando o meu céu...
Naquele quintal,  feito um Jardim Novo de sagrado pólen e prazer, brotam sementes de um tempo esquecido, subjetivo e real; então, o dia cresce e a vida passa a ser uma só: um mar de feliz em qualquer canteiro pobre e esquecido... O dia me convida e logo estou criando asas com Sabiás entre Hortelãs, atraído aos Ipês surreais, pela euforia de Bem-te-vis e Colibris nos Girassóis, pela fome das Viuvinhas degustando o Melão de São Caetano, pela rara apresentação dos Azulões que fazem um musical mesmo em dia nublado e se perfumam no chão relvoso, na erva doce e nos Eucaliptos...
O dia cai. Sobe o regozijo dos Jasmins e das dormideiras. A garoa é improvisada; os pequeninos alados se escondem, as lágrimas transitam no rosto, um silêncio acalma, vejo a sombra ao pé da Mangueira e me entrego ao sono de uma infinita paz. E se no outro dia houver olhos que não se esfriem devido às fuligens de um estranho tempo, o mundo livre continuará naquele quintal e os voos para dentro do ser serão guiados com asas de passarinhos, e o relógio da alma há de parar no agora: este novo e encantado céu...

domingo, 19 de agosto de 2012

Soneto à Maria Bonita - Sergio Martins

[MULHER+DO+CAMPO+C+VESTIDO+E+CHAPEU.jpg]



Vi o Jequitibá, a peroba, o imbu, os cedros – mundo verdureiro,
mas tenho a graviola bela, as maçãs vermelhas,
a terra preta e boa que, em namoro com sua pera quente,
para mim, deu pano pra Manga; semelhante à prosa de roceiro!

A hortelã perfuma os salgueiros entre os juncos, o abiu, o saputi...
A cereja adorna o campo de acaju-catinga, laranja lima,
palmito, tâmara, feijão olho de pomba... e riacho acima,
vou afoito no cavalo para descobrir a banana d’água junta à caqui.

Encorpada de meu néctar e caramelada ao fulgor de seus jambos,
quais palavras simples aclarando minhas complexidades, notei o
prazer da escuridão: inseguras metas, dores e regozijo de ambos!

Da velhice de canoa ao fumo de rolo por todo atalho de mato e brita,
da infância longeva e das tardes frescas sob a sombra da rede após o
almoço, desejo só o frio aos pés da fogueira de minha Maria Bonita.

sábado, 18 de agosto de 2012

O sino - Sergio Martins




            O Sino me tocou.
Tive que levantar
às seis horas, num clarão,
sentindo um verso voar...

Vi os florais de vitral
da igrejinha barroca
e tentei compreender
a razão de sua beleza
não fazer esse mundo acordar?

Dei às costas. Resolvi não lembrar.
Já de portas fechadas, não deu pra conter...
É que vi e senti todo Seu amor
e Sua poesia morando nos olhos
que choravam as desgraças dos telejornais...

Estou vendo as flores abandonadas no vendaval;
                        ainda sou só  - mais um no cais seguro desse temporal...

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Fragmentos - Sergio Martins



A dispensa, a perda, a falta, as pequenas e diárias mortes que se instalam quando as coisas e as pessoas se vão...
O ter que partir quando não se tem ao menos força para andar, é adquirir na alma os buracos pelo que se perdeu e os pedaços – das coisas e pessoas que amamos – passam a morar em nós...
Vejo a chuva sobre as retinas, olhares embaçados contemplando a beleza (embora não possam absorvê-la para a alma seduzida), pálpebras se movendo frias sob a névoa do tempo indiferente... Enquanto eu percebia a dor do mundo, ouvi as vozes de um outro mar: "incorpora-se em nós a umidade dessa meia-luz, nos adentra o quarto minguante do luar, o lindo canto dos pássaros nos é revertido como uma filarmônica lúgubre e parece que só temos as batidas do coração para nos aquecer os ouvidos abandonados; e porque somos desempregados da arte de amar e de sermos amados por quem mais nos dedicamos; nos advém a penumbra de um adeus: tudo é saudade, chão sem chão, olhar viajante e saudosista para a imensidão colorida e jovem..." 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O sentido - Sergio Martins


O concerto para clarinete de Mozart consertava meus desafinos na singeleza da tarde regada a um delicioso vinho sob os gotejos da garoa ao clima de montanha...
Mal se despedira o chuvisco e as crianças já abriam as porteiras para brincarem  nas poças, com sapos,  rãs nos brejinhos transbordantes e se ensoparem na lama com o pretexto de jogar futebol.
Os pardais desabrigados enxugavam suas asas e levavam galhinhos para o lugar do novo ninho, os vira-latas se achegavam até formarem um grupo que viajaria em mais um dia de aventuras.
Alguns coelhos se despiam do medo e saíam de suas tocas para almoçarem juntos, os gatos permaneciam sonolentos e na despedida da chuvinha, a alegria da vida natural encontrava uma oportunidade de retomar o seu espaço.
A folia de toda a paisagem que eu saboreava na sacada mais alta da serra, crescia juntamente com o último concerto do disco que sobrevoava o meu ser – é porque, geralmente, o último concerto dos discos é um "Alegro", uma canção festiva traduzindo o resultado feliz de uma sofrida história de amor –, por isso, fiquei muito contente com a terra-pátria-amada-mãe-gentil, da qual, sou um com ela; pois,em tudo o que eu punha os olhos sentia uma canção encantadora.
Até que minha conversa com a harmônica sinfonia foi interrompida pela bagunça que vinha do barzinho: os mais velhos xingavam uns aos outros, entre jogatinas e ameaças puxavam-se facões numa rivalidade que para eles era tão normal como a doença de se embriagarem todos os dias em nome da pseudo liberdade; estavam diante de mim os personagens confusos de um carnaval psicológico que os proibiam a busca da verdade como referencial de um sentido para suas existências.
Logo surgiu uma cena em minha mente: desci agarrando um velho furioso, lhe sacudi e gritei para acordá-lo de sua insanidade:
- Não sentis o confortante perfume dessas encantadoras canções...?!!!
Sem demora, respondi para mim mesmo ao perceber que ninguém me dava atenção: ora, é óbvio que não podem sentir porque estão loucos, sem esperança e famintos de um significado que somente o amor – arte poética, livre e libertária – pode criar, posto que, sem poesia, toda a verdade é utopia! E já acalmado pelos Sabiás e Bem-te-vis que se amigavam com a frondosa mangueira repleta de frutos bem à frente da sacada, lembrei-me de uma frase que mais tarde eu usaria para um daqueles antipoéticos que me ignorou: “se você não encontra sentido nas coisas, é porque o sentido não se encontra. Se cria”. (Saint Exupére)

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 3/ final - Sergio Martins




Quando ele notou minha presença, pausou o choro. Ao levantar-se largueando meio sorriso, abraçou-me agradecido pela companhia e revelou-me que acabara de acordar de um sonho. Daí passou a narrá-lo para mim: "em meu sonho, adentrei na realidade da tela misteriosa e fiquei observando o menino sentado na grama esbranquiçada pela nevasca à clareira dourada da manhã como se estivesse hipnotizado em direção ao reino cercado pela muralha que ao longe, ainda embaçada pela neblina, os raios solares nos permitiam contemplar..." Me aproximei perguntei ao amigo o que mais o atraíra no sonho; e ele disse que era o muro alto e a linda paisagem. E acrescentou: não entendi o sonho, mas já que há tempos não tenho um sono e um sonho tão bom quanto este, me sinto leve, com fome e até mesmo com vontade de caminhar pelas ruas.
Não sou psicanalista para conseguir destrinchar o inconsciente alheio, porém, explorei em mim o interpretador de sonhos lhe informando que finalmente entendi os conselhos da pintura anônima: a cidade medieval precisa de um muro para sua segurança enquanto a paisagem está livre e aberta para todos virem e degustarem sua beleza. Você é uma cidade que compromete sua felicidade por causa da autodefesa agressiva – a muralha. O mundo e a vida continuam seguindo seus cursos naturais; isto é, não são as coisas e as pessoas que vão mal, você é que se fechou para a beleza por causa da péssima gerência dos seus conflitos...
Ele me interrompeu: E por que o garoto na friagem do ventre da floresta?
— Porque somente a criança que mora em nós – a qual, vez por outra é abandonada pela nossa madrasta projeção sentimental – consegue passar de um episódio depressivo à euforia sem permitir que em seu íntimo seja instalado um estado glacial das emoções; pois em meio aos colapsos, ela, a criança, não perde a liberdade de alimentar-se da beleza, de não se vitimar pelo inverno existencial, pois, o seu firmamento interior é primaveril e influencia sua realidade com suas luzes, cores e graça. O muro é a representação da raiz dos problemas que a criança não nega, os encara e os coloca no seu lugar: bem longe de si. O pintor, quem sabe, vivendo à escuridão de suas emoções, também sentiu a dor de todos nós, a dor de carregar no colo da alma o menino abandonado que nunca nos abandona?
E assim como o amigo iniciou o dia com aquela palavra melancólica do nosso grande poeta, também encerrei nosso diálogo com um conselho sobre o desfecho de nossa história em contraste com a incapacidade de criar e de enxergar beleza nos momentos mais difíceis:
Assim eu quereria meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais.
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas.
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume.
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos.
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

(Manuel Bandeira — O último poema)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 2 - Sergio Martins






Sem poder evitar, ele se pôs a dormir depois de beber um forte suco de maracujá enquanto eu me direcionava à sala a fim de saborear as pinturas dos quadros e talvez absorver nelas alguma técnica psicoterapeuta para desafogar o amigo de seus conflitos.
Dentre os suntuosos quadros, fui seduzido por uma lindíssima tela de assinatura anônima. A arte era fiel em seu realismo, seus contrastes de luzes, sombras e cores exaltavam com perfeição a colorida paisagem gravemente tocada pela neve sobre as árvores secas qual algodão enrolado nos seus galhos, pelas planícies cobertas de gelo como se esperassem os esquiadores, pelo mar branco que em minha percepção tomou a forma de uma pista de patinação, por um enorme e alvíssimo campo convidando as crianças para fazerem bonecos de neve e pelo céu anil e orgulhoso de ter o seu majestoso sol.
Naquele momento, meu corpo sofrido pelos trinta e poucos graus queria a piscina que já estava transbordando à minha espera, ao tempo em que eu me ocupava em decodificar a mensagem da pintura anônima e o que se escondia por trás das palavras com as quais o amigo me respondeu, me faziam trabalhar demais a imaginação: O sol tão fraco neste quadro que vale o preço de uma Esmeralda, e em minha alma amanhecendo – poesia.
Saí da piscina às quinze horas despertado pela fome. Comi uma maçã graúda e bem vermelha que me fizera lembrar da bruxa que ofereceu esta admirável fruta para a bela que ao comê-la adquiriu o feitiço da longa sonolência, entendi que de igual modo o amigo quis a mandinga do sono ao tomar um concentrado suco de maracujá para se distrair da vida festiva e complexa, então, tomei suco de laranja com bolo de chocolate depois de almoçar filé de peixe grelhado com bastante salada de verduras. Fui ao quintal descansar sentindo o vento fresco e lá fiquei por um considerável tempo ao balanço da rede e quando ia me esquecendo da vida a música dos Bem-te-vis me fez levantar e ir de novo à tela inominada, sendo que, agora, ao som de uma valsa de Strauss minha mente se arejava e eu percebi na pintura a presença de um menino que parecia atento à contemplação da paisagem e no seu extremo horizonte havia uma muralha de cidade medieval. O quadro que era fenomenal e simplesmente o retrato de uma página do cotidiano do pintor, tornou-se misterioso; não consegui entender o motivo que levou o artista deixar aquela pobre criança no meio da floresta daquela frígida manhã, muito menos o significado da muralha ao longe que encerrava a paisagem feito linha imaginária. Do relógio central da sala ouvi o tic-tac marcando dezessete horas; ao que me apressei para ver como estava o amigo. Abrindo a porta do seu quarto o vi sentado à beira da cama chorando aos soluços. Eu sabia que a má administração das crises do companheiro o levara a este estágio inicial da depressão, mas o seu pranto me fazia entender que toda sua vontade de morrer evidenciada na ausência de fome, de sono e de ânimo, na verdade, era um manifesto de quem desejava viver intensamente. Sua tentativa de suicidar-se aos poucos não era o desejo de fugir da vida, e sim, um protesto equivocado, a vontade de driblar os problemas que a vida trazia como um empecilho ao seu afã de amá-la demais e com êxito.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Um dia de psicanalista - parte 1 - Sergio Martins




Entrando a primeira hora da tarde de um dia ensolarado ele acordou mal-humorado e angustiado com tudo. Permaneceu na cama, trancado para si, corpo doendo de tanto estar deitado. Quando não se deitava à tarde pela noite mal dormida, acordava bem cedo por causa dos pesadelos; em suas olheiras se percebia que há muito não dormia bem, apenas cochilava aprisionado pela insônia. O fato é que ele havia me pedido para passar a noite em seu quarto a fim de não ficar a sós com aquela depressão. Até que se levantou e ligou o ar condicionado para amenizar a quentura do corpo, mas logo que o vi voltando para cama na tentativa de dormir novamente, entendi que ultimamente, toda sua trajetória após sair da cama era um grande esforço para negar a realidade, as possibilidades de achar prazer em meio às crises, as melhores coisas da vida que se recebem gratuitamente... Então, no momento em que se acomodou no leito, tentei animá-lo: está um dia tão bonito lá fora...! Sua resposta veio neste lindo protesto de Manuel Bandeira: O sol tão claro lá fora, o sol tão claro, Esmeralda, e em minha alma – anoitecendo.


sábado, 11 de agosto de 2012

Soneto ao vale de lágrimas - Sergio Martins




Finalmente desisti de te buscar pelos céus de ares tropicais.
Desafinado e rebelde cresci, diminuído de pesar,
e como um tema fúnebre te vi - lua triste, falazes cais -;
continuei sendo palavra ao ar, pensamento solto no mar.

Onde estavas ao segurar e apertar minhas mãos às suas,
ao adoentar-me febril em pesadelos nas geleiras passionais,
na ira pela qual atacava meus vilões ou em covardes fugas?
Onde guardastes as estórias, as festas e tuas estradas rurais?


Insisto e te chamo não sabendo o porquê desse querer estar são;
de ver-te e festejar. Mas o que agora quero é deixar de desejar,
não ter que partir tendo meus sentidos partidos em um amor vão.

Por fim assisto seu fim, suicidando-me aos poucos na lua invernal,
e já que és a imagem da fuga dentro de mim, tento me encontrar
afogado em dúvida e medo - peregrino no vale de lágrimas paternal.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Olhares lunares - Sergio Martins






Foi-se o mar. Estrelas descansaram. Andorinhas descobrem novos horizontes e a chuva desaba mansamente enquanto me acolho na gélida canção de um vento ansioso.

O barco lança as âncoras, as pegadas somem na areia em que se fragmentam os desenhos e as palavras afetuosas, os pés se afundam na umidade imprevisível, ondas alvoroçadas formam espumas densas - uma breve inquietação pelas questões do amanhã - os carros passam velozes e inconsequentes como as preocupações... E eu só queria estar ali, degustando aquele sabor glorioso, mas você não veio... Deixei de esperar, fui me rebuscar no céu do mar onde a lua que estremecia no balanço da maré alta era a recordação das turbulências do seu olhar...

Outrora, você corria ao meu encontro e eu não deixava de me encontrar apaixonado e quando partias, nossas partes se uniam; hoje, em razão de ser expulso, eu sumo, sua voz desaparece e para o meu anoitecer, nesse mar você se reflete.

Mas é por ingenuidade de te sensibilizar com esse meu jeito de obter novamente aqueles olhares lunares, que no silêncio desse expressar longínquo e desse velejar transoceanico, me torno exaustivo à picotar-te à emoção:

vai-te amar,
vai-te às maresias
para o teu ser libertar!

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Coleira - Sergio Martins




Não. Descreio completamente que minha dor maior venha da despedida permanente que mora em teu semblante ou o fato de eu ter te amado demais e até mesmo incorretamente, pois ainda se falasses mil vezes que meu amor por ti foi uma cisma replicante, eu sei o que representastes para mim e por isso, devo lhe agradecer – por te conhecer de perto –, ainda que hoje representes nada mais do que aquela antiga e estranha beleza – uma fotografia revelando a magia feliz de um tempo doloroso, um filme sem o fim esperado, o insucesso da viagem sonhada. Na verdade, agora posso admitir que o problema todo, como sempre, flui de mim, pois ele é minha parte inseparável, eu sou o epicentro, a raiz dos meus-teus problemas. Sinceramente, sei que a culpa toda foi minha como você mesmo sempre soube a ponto de dizer muitas vezes; visto que, se eu não fosse tão aventureiro poderia de fato ser mais feliz, feliz contigo, todavia, meu inconformismo – com a tristeza que emana de tua beleza – não te recebe, de modo que sua cólera, suas grosserias descabidas que me constrangeram e me feriram demais é o seu mundinho em que não há lugar para mim – isto você me advertiu várias vezes –, porquanto, essa tal cólera é a coleira que jamais aceitei, pois sou pássaro de voos estranhos e distantes de tuas altivas planícies.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Soneto ao feitiço e ao feiticeiro - Sergio Martins




Aguardo ansiosamente a lareira de mais um inverno,
aguardente expectativa feito redemoinhos;
há coelhos acuados, cheios estão os ninhos,
formigas descobrem funduras e se perdem no tempo.

Acende-se o tronco seco- quebrado, furtado e preso às raízes
de desprezo pelo tempo- no anseio pelos brotos,
avermelha-se de fúria, esquenta-se de desgostos;
de nada valerá: fumegará ao som dos seus estalos infelizes.

As águas se esconderam para sempre desse andarilho aventureiro,
o fogo que lhe consome é feitiço dado ao feiticeiro
que desbravou mares e desertos, mas que só achou espinhadeiro.

No fogo e frio, o feiticeiro encontrou seu amor - tino existencial -,
alimento sólido para a beleza imensurável do seu ser;
mas o fogo - arquiteto e inquieto - consumiu todo o seu cafezal.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Em pleno inverno - Sergio Martins




Em pleno inverno vi, como fosse a "Primavera Árabe", o céu azul sem nenhuma nuvem,
o mar convidativo, Plátanos, Abricós e Acácias
iluminando as vias de sofisticados carros,
crianças brincando num belo parque em meio à correria
do Centro, foliões à beira mar, danças e teatros de rua,
pomposos museus e espaços culturais,
a menina tranquila pedalando sua bicicleta,
admirada com pássaros que musicavam a via expressa...

Em pleno inverno vi propagandas de consciência ambiental,
de túneis e estradas encurtando o tempo-espaço, estádios irresistíveis, hospitais enormes e bem equipados, escolas recém construídas e a cidade bem limpa.

Em pleno inverno vi que a limpeza varria o "lixo social" dos olhos dos turistas, foi quando senti saudade das folhas de ipês colorindo o chão, da terra livre de todo esse concreto frio, dos moleques lotando às ruas para apanharem mangas, carambolas e jamelões...

Em pleno inverno vi um sabiá apático, a cidade sem voz, a esperança perdida dos que só têm um fim de semana para resfolegar o que só adia suas mortes - em vão...

Em pleno inverno vi que para construir casas, destroem-se árvores, que o "progresso" perdura, que há mais expectativas, estimativas e perspectivas se contradizendo nos jornais; mas todo esse custo é na mesma proporção:
trancas nos carros,
cadeados nas janelas,
alarmes nas casas,
câmeras em toda quadra
e o negro trabalhando muito mais,
embora ganhe menos que o imaginável.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Viagem de volta - Sergio Martins





Ela ouvia música celta, cumprimentava Namasté,
vestia indiana e indígena, preparava meu Frappé,
estimava caveiras mexicanas, fazia Origami,
Habló muy bien, mas tinha amor de Tsunami.


Nem posso reclamar de sua longa viagem,
ela deixou mais do que juntei até aqui.
De profundo, já esqueci do que é margem...
Ela sempre ria quando a chamava de caqui...

Eu fui o que serei e terei lembranças do que sou,
o Julho frívolo terá a mesma fervura pra cozer
e dar tempero a toda vida que nos alimentou;
assim hei de viajar e dar asas àquele prazer.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Soneto do retrato - Sergio Martins

                                                    




A poeira de chuva desembaça a retina do menino impactado pelas visões.
O frio por fora da lente, por dentro, uma paz eufórica- interior oxigenado...
Dançam os namorados ao bolero- a terra remove suas pétreas emoções;
o inverno não é tempo de guerra- reflexo do íntimo no retrato congelado.

A árvore seca remonta a pessoa como de fato ela é- olhar sem maquiagens.
Blocos de gelo deslizam sobre o rio- diamantes criando ilhas cristalinas...
No olhar distante brotam pedrinhas brilhantes- paraíso de imagens,
calma e movimento em vales nebulosos- arte glacial eternizada nas colinas.

Estagnei desorientado frente à névoa sobre os montes metalizados de magia,
feito vapor que sobe do bule para eu me deliciar no café aromático; de fato,
ao captar o subjetivo ali esculpido, senti-me destrinchado pela fotografia.

Na excitante graça de receber a felicidade em tudo que eu pudesse ver
nesse estar-encantado, fico perto de mim - não estou mais onde meu corpo
está - transladado e envaidecido pelos fotógrafos habitantes do meu ser.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Pela sombra - Sergio Martins




Porque estou tão feliz e isto  não é novidade pra você,
é dor advinhar as canções de teu assobio fleumático.
São maravilhosas todas as suas composições e ficções;
mas lembra daquela tão forte luz dourada em que eu mal
enxergava seu rosto e de como seguia feliz pra escola
com seu jeans gasto, tênis rasgado e cabelos coloridos?.

Não me diga nada, nem precisa me olhar do jeito que gosto,
dê um salto pelas ruas e sinta o calor desse dia pois há
tanta clareza fora de nós...
Não precisa pôr seu novo batom, o caro perfume ou este
vestido de sua grife preferida, apenas deixe este sol de
inverno te aquecer e não volte com a mesma pele...

Porque eu me sinto tão feliz e isto não é novidade pra você,
ao menos hoje - deixe o barco correr - meu amor, volte ao
lar doce lar, depois sim, vá pela sombra.

sábado, 23 de junho de 2012

A outra estrada - por Sergio Martins

[woods.jpg]





Não confunda encostamento com acostamento.
Não há despensa, nem dispensa ou conveniência,
só esse desmedido punhado – de emergência.
E porque é tarde, terei que voltar,
talvez para o antigo e estranho lar;
pois já não penso em perder tempo.

E porque é noite, terei mesmo que partir
e isso não não é abandonar,
é que tenho pressa por seguir
a trilha onde a vida está a pulsar.

Por fim, (não) seria perfeito todo aquele sentimento
e teus olhos de adeus se perderiam mesmo do meu olhar.
Não foi egoísmo, o simples capricho de mentir, desmerecimento...
Os bons passados e os vazios de agora são ofícios do autorrebuscar.

Essas portas abertas, luzes acesas, o amor ardente,
o céu entreaberto, o medo perdido na noite fria...
A dor era outra: o desejo de viver intensamente.
A felicidade era a outra estrada - que de lá não se via.

sábado, 16 de junho de 2012

Diminuto - por Sergio Martins




"Há centenas de planetas imensos nas galáxias incontáveis e desconhecidas enquanto tento encontrar meus papéis e à minha frente, dezenas de frases soltas tentam se remontar nesse pequeno dos pequenos planetas; e isto é o que restou-me de toda a caminhada: ser diminuto. Sou nada mais que um-só. 

Ante à convergência, o equilíbrio e o companheirismo que regem os astros, possuído pela beleza que compõe toda a gravidade e a agudez dessa harmonia celeste, eu desisti de viajar, fiquei cá embaixo à mercê das enviesadas verdades e estranhos convites desses papéis em branco, dessa transparência advinda da meia-luz da madrugada que me reflete - são as vozes do mar que deslizam esse ser diminuto. Sou nada mais que um-só."

terça-feira, 12 de junho de 2012

Soneto para namorar - por Sergio Martins

 


O íntimo da noite é clareza de luar despindo-me a frieza inquietante.
Na cama, muitas vezes canso o e refaço-me a juventude por querer
seu peito quente, sua voz rouca ondeando o mar em sopro delirante,
e então, numa dança ao toque das sombras, temos um só prazer.
A auréola colorida do seio lunar cresceu sobre os capinzais eriçados,
à brisa dos lábios amantes da luz negra - amores descompassados:
o lírio branco sorri aos desvarios de vulcão espargindo alegria
feito borboleta levitando alto, gozando em liberdade e poesia.
Sem assustar-se com o sentimento, o coração fará o dia florescer,
então, dormirá o passado para se acordar junto ao novo abraço:
sentir que tal mundo é o melhor lar, anseio de chocolate e amar.
Finda a euforia, há de se ter a calma dos montes no sol de amanhecer,
num sussuro de gratidão, onde ouve-se a harmonia de tempo-espaço:
Belle Époque e paixão: céu e terra em sinfonia lírica para namorar.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Soneto ao vazio existencial

     

               
No fim de tudo, de que valeu a solicitude e o muito trabalhar
se o tempo que levou o pão à mesa
não conseguiu dar asas à alma presa
que voou como água; que, com as mãos não se pode segurar?

E onde esteve a ciência quando faltou emoção?
Como devolver toda a simplicidade feliz
ao ser adulto e adulterado que, por um triz
da morte, se vê sôfrego, perdido em paixão?

O homem, para encher-se, fez muitos engenhos
de prazer e de dor, mas a poesia lhe oferece
um vazio, em prol do qual, com mil tormentos,

incessantemente, corre e sofre para o aniquilar;
ignorando que o tal vazio é o único meio por onde
todo homem poderá achá-la e assim se encontrar. 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

No fim - por Sergio Martins




Estradas vazias, praias sem luaus,
longe se vão cartas vãs, vinhos, saraus
entre chocolates, queijos, café, curaus...

São flores longínquas sobrevoando este céu outonal,
mares de más marés, cais inquietos, atalho desigual
no chão, no ar, no antes e aqui, a dúvida em pauta,
a saudade em casa traz tua voz ao som da flauta...
a chuvinha molha o rosto, a brisa seca a rua, acalma;
no amanhã mora a miragem, muitas tardes, na alma...

Esvaindo em dores,
vendo horrores,
apreciando cores, sabores e odores,
tremendo de temores,
dias e noites
escurecendo amores...

Já não sirvo (todo só), não posso tudo, só desejo;
por fim, eletrizado, dopado - silencioso desespero
de espera, de busca, de conflito, de cansaço e de mistério,
desisti do inferno mas não há paraíso, só um lindo cemitério.

Se com febre canto, me complica esta alergia,
não tenhas inveja ou dor, apenas alegria
de saber que é com e por você que vou,
que leio, que escrevo, que fico, que sou
amante, estranho, sempre afim,
louco pelo mundo e por mim,
eufórico, depressivo, mesmo assim,
convicto, sonhador, um tanto feliz,
descrente, decrescente, por um triz,
mas sempre no início vicioso de nosso fim.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Miragens de outono - por Sergio Martins




Era um frio crescente no litoral. Eu só esperava vento forte e mar bravio sob o mormaço que o verão esquecera de levar. E quando o calor se foi, pensei que choveria quando subitamente vi ao longe um lençol denso de nuvens escuras se desfazendo enquanto aparecia ao fundo um recorte impressionista de abóbada azul celestial.  No crepúsculo vespertino, a chuva não veio e pela fresta de nuvens, um vacilante e tímido raio de sol refletiu seu brilho no imenso rochedo da ilha como um sorriso oferecido no sombrio existencial, feito uma antiguidade perdida que reaparece à luz de vela no quarto escuro.  

Pensei nas coisas que fazem minha alma sorrir em meio à estranheza do tempo-espaço. E dentre tantas coisas achei uma razão maior para nunca esquecer-me da alegria no mal-humor existencial: a amizade. Novamente as imagens de chuva adentraram minha mente. Fiquei alguns minutos tentando entender o significado da associação que meu inconsciente fazia entre chuva e amizade. Já quase desistindo de entender me veio à memória um dia de calor maciço numa tarde em que eu estava no quintal de casa, quando a cigarra se pos a cantar na mangueira, até que veio a chuva confundindo a pequena cantora que teve seu suicídio adiado. A chuva livrou a cigarra do seu cântico de eterna despedida – a cigarra acaba morrendo após seu duradouro espetáculo. Chuva e amizade. Chuva é a manifestação da amizade divina com a terra: espírito e matéria em harmonia. Amizade é chuva de consolo que nos livra das miragens de outono, isto é, da morte prematura.

No litoral, a ilha que eu via me contava sobre a porção ilhada dentro de mim, maltratada pela erosão; lá onde o outono nunca se vai e parece que o tempo é excessivamente tardio para se refazer em esperança. E assim como a chuva sobre a cigarra e o sol estendido no rochedo da ilha ao entardecer, a amizade sempre surpreendeu meu canto triste ao me fazer entender que "nunca é tarde demais para se dizer bom dia". Lembrei-me do episódio em que eu estava me afogando na cachoeira do Mendanha um amigo conseguiu me salvar.

Ainda no litoral, o céu permanece metamórfico, o mar não estava para peixe e o clima e metafórico; então, ajoelhei-me e escrevi na areia úmida: "sem amigos, vivo aprisionado nas miragens outonais".
Miragens de outono - lugar onde o dia cai com a ventania que leva todo resto
- folhas secas se encontram no destino incerto -
o silêncio não responde
mesmo à beira-mar de um mágico horizonte,
todas luzes, todos brilhos se desconvertem
do olhar, a brisa calma e as andorinhas festivas se perdem,
o porto seguro é invadido pelos temporais,
desaparecem as mentiras sedutoras no escuro: o forte e o cais,
pela névoa, a ilha se vê invisível e ameaçada de dissipação,
nela, as visões sobrenaturais e predadores acham diversão,
as rochas se rendem às ondas tiranas,
o firmamento está em assombro entre estrelas profanas,
a manhã tem granizo e neblina
e só a cigarra entoa a fúnebre cantiga
do amor perdido, da amarga despedida,
da primavera adormecida,
enfeitiçada e enfraquecida
no crepúsculo declinado sob a vida vespertina.

sábado, 7 de abril de 2012

Soneto para o Domingo de Páscoa - por Sergio Martins







O entardecer de recordações trágicas,
as noites glaciais em amargura,
o abandono que abriu a sepultura
nas almas risonhas, festivas e mágicas,

a inesperada despedida do encanto
e o esmigalhar do desejo alcançado
são miragens longínquas, medo rejeitado,
que nos corações estão se desbotando...

É que no domingo de Páscoa, os sonhos ressuscitam,
após o temporal, a beleza habta a tristeza, imutáveis,
a fé e a paz são verdades que não se distanciam...

O silêncio não é dor, e a saudade não é ausência de viver,
porquanto, o olhar arrebatador da vida é amor único e
incontrolável desabrochando o íntimo a cada amanhecer.


Imagem: Google

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Soneto de menina morena - por Sergio Martins

                                             


O tempo afetuoso levou-me à noite gélida e alucinante,
e, semelhante às árvores pantanosas, eu, musgo entre
frutos ilustres, luzi minha alegria no macio ventre 
de menina morena: do seu amor, ao luar fui navegante.

Feito uma canoa que balança presa à encosta do porto,
lembrei-me do poço aberto, do vulcão que se alegrou
nele, espargindo sua semente; e o lodaçal se revigorou,
do tijuco brejeiro surgiu nascente cristalina, fértil horto.

Assisti os capins afogadiços pela enchente lodeira do riacho
exaltados e livres; debaixo da grama florescia a vida como
voo desamarrado do olhar, ervas em revoada no áureo facho.

Porquanto, ante às graças veraneias, o que sufoca o chão suburbano
não são as nobres pegadas que se foram ou as pétalas abatidas que 

ao sopro bruto fogem, é a raiz que rasga - o broto lindo e desumano. 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Postagens mais visualizadas