Do quarto, a porta é a passagem de toda uma vida que se perdeu; é a via por onde se entra todos os dias qual permanente regresso ao tempo da alegria. O estar ali, pós-porta, é sentir-se parado como um velho relógio na sala despertando lembranças de uma época de badalos às altas badaladas, mas que agora, sob a poeira da idade, silencia todo o ar com sua lânguida mudez.
A antiga e debilitada ossatura se joga à cama e abraça o travesseiro para fugir das inquietudes de um mundo rude e o retumbar que sente vir do coração é o concerto melancólico de alguém que se enjoou demasiadamente e já não quer mais...
As fotos não são mais visíveis, as cores joviais das paredes se desbotaram, o tapete ainda é macio embora vazio e solitário, as noites tropicais são admiráveis, mas no dormitório, elas se passam rápidas e frias. O mesmo sabonete, o mesmo perfume na toalha de banho, os mesmos assobios pelo ar, a almofadinha rosa sobre a mesma cadeira branca onde liam-se autoajudas e revistas de moda, as mesmas mãos que massagearam sua musculatura fragilizada pela labuta cotidiana, presentemente, se encolhem e se fecham para agarrar e seguir outro caminho deixando seus rastros afetuosos na perfeita arrumação da casa, no mesmo lençol estendido sobre a cama e os mesmos vasos inúteis sem as flores campesinas.
E a casa em primorosa condição não tem mais acomodação confortável para a bagunça existencial do gado aflito rumo à morte que garantirá o consumo de sua carne e o sustento alheio; e mesmo que seu infortúnio e sua carne valha tanto prazer a outrem, ele se pergunta: onde foi que deixei de ser– suficiente– eu mesmo? Onde foi que em doando amores e gracejos, tornei-me alimento precioso e de raro sabor às almas insaciáveis e pasto nobre para os desprezíveis pés que em mim se afundam com o peso de um mundo indiferente e inconseqüente?
É assim que rumina sua história, emagrecendo na fome por respostas, adoecendo com os remédios inúteis dos deuses tentando, quem sabe, achar paliativos e, exaustivamente, debulha o presente num amargo impasse filosófico como fosse grãos de cascas brutas, e martirizando além das desmedidas cargas sobre os cansados e curvos lombos?
Mas ele ainda anseia por ela, em total segredo de todos, implora a Deus para que ela volte, mesmo que lhe doa bastante a imagem do presente, tem para si que já perdoou suas sandices, que um novo e maduro amor apagará todos os absurdos, e então, apegado ao edredom– feito boi de cabeça pesada e cobiçada pelo apetite egoísta de quem ama–, atirado ao afetuoso colchão de grama, tenta dormir conversando telepáticamente e a sós com mais uma sedutora e bela noite que há muito lhe furta a devida paz e o justo prazer de quem plantou seu envelhecimento a minuciosos passos no degradante solo do encanto.
Foto: http://havemosdevoltar.wordpress.com/2010/02/16/a-tolerancia-zero-e-a-sonolencia-dos-bois-em-angola/
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