2007. Saí da estação de Realengo rumo à Central para uma entrevista de emprego. O trem das sete
horas estava cheíssimo. Com esforço consegui entrar no vagão lotado. Os
burburinhos, em geral, abordavam temas sobre política e religião (se é que há
possibilidade de dissociar tais instituições, haja visto, ser “laico” o Brasil). Notei em algumas pessoas que conversavam suas futilidades, uma euforia cínica
igual a dos que, sem alegria, celebram o carnaval (a festa do corpo que camufla as aflições
da alma, a fantasia diária cuja máscara é posta no intuito de esconder as emoções
doentias); encobriam-se, uma esperança perdida. A poluição sonora e as piadas
fúteis consistiam num método para aliviar a esperança perdida – risos e gritos
também são recursos desesperados e muito válidos para abrandar o momento
desastroso de nossa política. Acredito que a maioria do povo não se interessa
devidamente pela política e não trata a religião tão a sério, por esta razão:
esperança perdida. Embora eu seja um sonolento interessado pelo assunto, pertenço ao grupo
da esperança perdida; confesso. Inúmeras vezes fui convidado a ingressar na
carreira política, porém, nunca gostei de jogos de azar. Sou um aluno
esforçado, mas admito que a culpa pelo desinteresse não é minha (também é da
Teoria da Conspiração, obrigando-me acreditar que toda informação sobre a
política repassada ao povo pelos meios de comunicação, é apenas uma peça do teatro,
cujos personagens e seus destinos já são pré-determinados pelos donos do mundo);
sou fruto dos
históricos atrasos sociais e da subcultura protestante que é predominante nos
subúrbios brasileiros. Isto deveria ser trágico, não fosse minha impaciente
fome pelo (auto)conhecimento. Sou quase inteiramente cartesiano, confesso. A questão é que ter esperança no
espaço onde são semeadas a violência e a miséria, trata-se de um caso de
milagre. E, aqui,
neste Velho Oeste, os milagres raramente chegam, embora os deuses sempre apareçam
em época de eleição.
No bailar apertado do trem, lembrei-me do "Soneto da perdida
esperança" do Drummond:
“Perdi o bonde e a
esperança.
Volto pálido para
casa.
A rua é inútil e
nenhum auto
passaria sobre meu
corpo”.
No Brasil, as
instituições políticas e religiosas não "funcionam" porque não foram criadas para atender o todo, o povo, isto é, são ineficazes, não
apenas por serem agressivamente capitalistas num país em subdesenvolvimento, o que já é o
bastante para a decadência dessa sociedade colonizada que ainda sobrevive à
sombra do extrativismo (ora, o exercício da religião deveria ser a busca pelo bem do mundo/lar comum de todos mediante a reflexão e o ativismo de uma fé
holística, o resgate do valores imateriais e sociais), mas também,
porque é através da esperança perdida das pessoas que os líderes de ambas as instituições conseguem capital suficiente para investir na alienação
intelectual do povo, e, deste modo, conduzir o rebanho para o abatedouro, sem
muito esforço.
A poesia de Drummond fora travada de
minha mente quando, de repente, um grupo religioso se reuniu e iniciou um culto
de onde se ouvia a reza: “...E todo aquele que entrar neste vagão abençoado
será pelo poder de Deus...”
Lembrei-me de
outros vagões abençoados pela qualidade de vida que sempre estão inacessíveis
para os filhos de Deus neste terceiro mundo. Se a maioria dos brasileiros são
credos e devotos, porque ainda estamos neste trem de desesperança e miséria? Não
seria pelo fato de as pessoas não amarem seus deuses, mas o poder - de seus
deuses? O amor ao poder se dá em todas as esferas de classes e religião, tanto
a maioria simples que se prostra aos deuses em busca do poder econômico e da
posse de uma vida melhor, quanto a minoria que governa o povo qual demônios
famintos e devoradores. Amor e poder, paz e guerra, Vênus e Marte – sociedade
desigualmente dividida.
Emiti um suspiro contra a janela
antes de procurar alívio na graça feminina: a menina bonita, cheirosa e bem
arrumada me fez pensar que ela, possivelmente, seguia em mais um dia de
trabalho com satisfação; mesmo inserida nos apertados e sufocantes trens
existenciais. Na beleza e na força da jovem, uma luz acendia meu olhar,
enquanto do outro lado, uma senhora, que também se dirigia ao trabalho, com um
semblante de quem perdeu a guerra, parecia estar cansada de tantos trens sem
sentido - desde sua mocidade. Foi triste ouvir aquela senhora dizer que seu
exercício religioso a proporcionava uma certa suavidade ao oferecer a crença
que dias melhores viriam após sua morte; portanto, mediante sua fala e expressão
facial, não foi difícil diagnosticar que nem mesmo sua devoção e a autoajuda
religiosa garantem uma vida menos pesarosa. Esperança perdida – poder
suprimindo o amor. A imagem fúnebre da senhora parecia um prognóstico de todos
os presentes naquele vagão amaldiçoado pelos deuses do Planalto Central e
desenganados pelas propostas fenomenológicas da religião.
“...Fui criado numa comunidade da Zona Oeste carioca,
minha vida foi a experimentação da violência em suas muitas dimensões, por
isso, jamais consegui absorver a política brasileira como uma esperança
inspiradora. Nossas representatividades políticas, já dizia Cazuza, “morreram de
overdose”, daí, enxergarmos “o futuro repetir o passado”, “um museu de grandes
novidades”. É museu sim, mas, sobretudo, cemitério. Isso mesmo; a política e os
políticos são mortos, o cenário político nacional é um imenso cemitério – do
próprio povo brasileiro: assistimos diariamente o funeral
dos direitos e da esperança popular. A mim, a
política sempre pareceu mais uma cúpula de zumbis que sobrevive da carnificina
do povo. A respeito destes zumbis, esses mortos-vivos políticos, de meu sonolento
interesse por política, de minha esperança perdida e das últimas notícias sobre
a política nacional, ficarei com minha particular exegese teológica, a partir
de uma hermenêutica um tanto equivocada, quem sabe, das palavras de Jesus
Cristo: “Deixai os mortos enterrarem seus mortos”.
O trem da volta era poético: tinha janelas
espaçosas e transparentes que me permitiam apreciar a chuvinha fraca regando
algumas estações (meus olhos se umidificaram), ao passo que noutras estações,
clareadas de um sol vívido, via-se até o mormaço feito plástico incolor e
trêmulo subindo dos trilhos (enxuguei meus olhos). Em algumas paradas, o sol não alcançava, apenas sombras. Sorri imaginando-me criança abaixo de uma enorme nuvem, bebendo
de sua água fresca e lavando-me o corpo suado como acontecia após o futebol.
Respirei fundo o delicioso ar condicionado sobre o banco colorido e confortável
de dois assentos, à medida em que observava os universitários de olhos fitos em
seus respectivos exemplares didáticos. No desejo de manter
a magia do momento, abri a bolsa e puxei minha bússola (a antologia poética de
Vinícius de Moraes), e absorto, perdi-me novamente no "Soneto da
separação"; pensei até que o poeta poderia ter sentido um pouco do meu
desamparo quando fez este poema quando se separava do solo brasileiro numa
embarcação pelas águas longínquas do oceano Atlântico, rumo à Inglaterra.
Desci do trem. Sentei-me num dos bancos da mórbida
estação de Realengo. O fim daquela manhã de verão me acariciava com um vento
fresco e um silêncio arrebatador que às vezes era quebrado pela melodia dos
bem-te-vis e dos pardais alvoroçados.Tudo seria apenas a estranheza de mais um dia, salvo se, não
fosse um senhor negro e forte que me pediu dinheiro para voltar a sua casa, arrancando-me os poucos reais que eu tinha. Subitamente, ao pagar a viagem do
homem, fiquei alegre: bolso vazio, coração contentado. Voltei a pé para casa.
Por alguns instantes permaneci parado na escadaria apreciando o sorriso daquele
senhor, suas mãos segurando as minhas mãos com firmeza e maciez, os dedos longos,
hesitantes e suaves; e eu que
nunca tive pai que segurasse minhas mãos pelos apagões dessa vida, não dominei
meu coração abalado. Entreguei-me às lagrimas. Seria normal pensar ter perdido
tempo procurando emprego, mas aquela sensação advinda do encontro com o velho, pusera-me à ideia de ter ganhado muito e sido útil ao compartilhar mais
que meu único dinheiro: meus sentimentos.
Agora, definitivamente, encontrava-me na condição
de abençoado. Não abençoado pelo poder dos deuses ou pelos deuses do poder, e
sim, pelo amor. Dizem que, vez por outra, Deus se transforma em humano para
testar a bondade dos homens semelhantemente ao Jesus negro e mendigo que desceu
à Terra só para pedir um pedaço de pão ao personagem principal no fim da obra
"O Auto da Compadecida" de Ariano Suassuna; por esse ponto de vista,
Deus veio a mim na figura daquele velho que ao me pedir ajuda salvou-me da tristeza de perder o emprego. Ao partilhar meus sentimentos materializados na entrega
do único dinheiro que eu tinha, senti-me livre do trem amaldiçoado pelo descaso do
poder, e muitíssimo feliz por estar condenado a morar no expresso da poesia que
só tem ida, e que apenas segue um destino: o partir-repartir – o amor como único
e eterno norte.
Pelo caminho, não sentia mais o pesar de um emprego perdido, apenas gratidão e a certeza que "Quem está possuído pelo amor não se move bem nas coisas do poder". (Rubem Alves) Foto: http://www.temmais.com/blog/depontaaponta/Default.aspx?Pagina=2
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