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domingo, 24 de outubro de 2010

O paraíso dos anjinhos travessos por Sergio Martins


Um de cada vez chegava à pracinha para soltar pipa.

Cada pipa era uma preciosidade: a carrapeta impunha respeito com sua rabiola quase do tamanho do campo de futebol, essa só servia para quem era sabido do assunto, tinha a batatinha leve como uma pena, de rabiola pequenina e de velocidade incrível, o pipão de linha roca enfeitava o céu, eram enormes e pesadíssimos, com formatos variáveis: tipo caixote, bolinha, retangular...

É claro que vez por outra aparecia uma raia para acabar com a alegria da galera. As raias são difíceis de cortar e aparar, pois são rápidas demais, seus movimentos enganam, além de não possuirem rabiola.

Sem pipa para soltar, o jeito era admirar o céu das carrapetas, dos pipões e das raias, pois, na arte de empinar piões, só permanecem no céu os reis que conhecem a melhor linha, um bom pião, a hora certa de cruzar e de aparar.

Sem dúvida alguma, em todo lugar existem os “gerequinhos” machucados, feitos de jornal, remendados, equipados de rabiolas horríveis, de cabresto embolado, de esqueleto de bambu velho ou quebrado; tem até aqueles que são colados com arroz ou macarrão cozido, os de plástico sujo e de saco de supermercado.

Ora, quem nunca soltou uma bolsa plástica amarrada com linhas puídas e cheias de nó apenas para atrapalhar a diversão dos outros? Mas apesar da deselegância, todo tipo de pipa ou coisa parecida subia, compartilhando e competindo do mesmo céu para a alegria geral.

Há coisas que são inevitáveis, por exemplo, quem havia "voado" não adiantava chorar, quem prendia sua pipa na árvore não seria intelogente se tentasse “estancar”, pois rapidinho vinha um “sem vergonha” para meter a mão naquilo que não era  seu! A solução mesmo era pegar um bambu bem grande e ir à caça de pipa “avoada”, caso não conseguisse, o único remédio seria descarregar a raiva daqueles que cortavam e aparavam todo mundo, furtando restos de suas linhas e rabiolas pelo chão ou seguir perturbando com marimbas que iam alto e cortavam a linha do primeiro mané que desse “mole”, caso a carrapeta, o pipão ou a raia caísse numa árvore ou num fio de poste, era melhor nem pensar em pegá-los com o bambu ou com a marimba, pois ao final de tudo, apenas os grandalhões ficavam com o prêmio; aí a confusão estava feita: dava-se início a um concurso para eleger quem melhor quebraroa o prêmio e ainda ficar com um pedacinho para contar história!

E foi num desses episódios onde o “coro começou a comer”, que as mães vieram correndo com chinelos, cintos, varas de goiabeira e vassouras prontas para a guerra. Só que os moleques abusados e brigões tinham suas mães sempre a defendê-los, quando não, vinham com seus irmãos mais velhos de  cara de poucos amigos, que só de vê-los, o coração dos menos favorecidos gelavam-se de medo. Porém, quem tinha boa educação não hesitava em atender à intimação de mãe: entra logo em casa menino senão vou te buscar... Não vejo a hora de acabar esse inferno de pipa!

Mas entrava por um ouvido e saía por outro, pois esquecidos da surra e dos duelos, a molecada saía desesperada de suas casas aproveitando a distração dos pais; já outros, matavam até aula e ficavam o dia inteiro na rua, para que então, unidos e sorridentes entre apertos de mãos e troca de pequenos favores pudessem assistir a mais um show no céu e participar da festa naquela pracinha; ou melhor, no paraíso dos anjinhos travessos.

Pintura: Meninos soltando pipa - Portinari

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