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terça-feira, 12 de outubro de 2010

Do que é belo para se viver por Sergio Martins




Foram muitas e felizes as vezes que aquela bela cena se repetira em frente ao espelho: o olhar apreensivo e entusiasmado da moça penteando seus longos e lisos cabelos, a maquiagem demorada cheia de minuciosos detalhes, as roupas experimentadas com criatividade para se adequar à moda, a indecisão de última hora pelo sapato adequado... Mas o semblante de menina perdurou apenas em sua memória, porém, não foi tão rapidamente que seus cabelos grisalhos, às centenas de centenas, enfeitara-lhe o visual. Realmente, nada vinha ao seu respectivo tempo. Cedo demais apareceram as rugas, as olheiras, o acúmulo de saudade no guarda-roupa contendo o perfume do ex-namorado em suas blusas e alguns fios do seu cabelo grudados em alguns casacos, e das gavetas, sobravam embalagens de bombons, pétalas de rosas, bilhetes de teatro, de cinema... Era declarações de bons e eternos sentimentos, miragens de uma época em que se podia assentar num banquinho de praça, comer pipoca, beber guaraná, ver estrelas, sorrir à toa e banhar-se de lua.

Pela janela do seu quarto ela observa a vida passar sentindo o frio agudo lhe embaçar o íntimo contra a luz dos seus desejos reprimida por um olhar vazio que traduz o coração cheio de ansiedade, cansaço e fracasso. O trabalho já não trazia nenhuma esperança de contentamento e furtava seu tempo para os filhos; com o dinheiro acumulado em sua conta bancária tentava achar um meio de se aproximar deles e adquirir medicamentos sofisticados para despoluir seus pulmões dos males do fumo e oxigenar sua mente do caos.

Contudo, hoje ela acordou contemplativa. O espelho era o mesmo, mas seu olhar estava renovado de um sentimento quase apagado. Há tempos que a vontade de viver agitava sua mente e as horas corriam velozes enquanto a madrugada caía descortinando o nascer do sol. O dia já posto, sempre esteve lá juntamente com a leveza das manhãs e a calmaria das tardes; a riqueza existencial permanecera, a todo instante e gratuitamente, à altura de suas mãos, ela é que preferiu as ilusórias fortunas do poder. Daí, se encontrar novamente presa à janela, só que desta vez, reconhecendo que os olhos precisam alimentar-se de toda a beleza do caminho, do contrário, ela adoeceria e morreria novamente dia após dia. Sentia a liberdade em tudo de simples que de pouco em pouco amaciava seus nervos; de modo que o significado de sua existência, inevitavelmente, já morava nos pequenos atrativos de cada momento: o prazer único e sem fim das noites de domingo ouvindo as boas músicas, comendo chocolate ou batendo papo-furado com a família, do banho de mangueira ou de balde suplicado pelo calor de verão, da contemplação dos lindíssimos Dentes de Leão com seu amarelo singular se confundindo com a flor do algodoeiro e com os Girassóis de sua varanda, das cantantes flores rasteiras cor de ouro, das vaidosas Azaléias, do gramado regado pelo orvalho, dos pássaros dançantes, do crepúsculo visto da enseada de Botafogo entre o alto-mar e o Pão de Açúcar, dos maços coloridos de Musgos e Orquídeas da Pedra da Gávea, da sombra em que se é saboreada debaixo do cajueiro em seu quintal, das folhagens viajantes de outono que criam tapetes coloridos pelo chão em que os pés deslizam macios...

O dia ensolarado lhe concedia a a realização do sonho de ser-si-mesma, a noção de que ainda estar viva era um milagre e a certeza de que tudo fazia parte dela e ela, parte de um todo. As coisas e pessoas à sua volta representavam um presente iluminado e inspirador da vida como retribuição à paixão dos seus olhos pela beleza. Com gratidão na face, foi-se desesperada comemorar o ar de puro carinho removendo o mofo das roupas de festa, desatando os nós das preocupações flutuante por admitir que as melhores coisas da vida não são e não podem ser compradas, e sim, vividas e compartilhadas, compreendendo que o amor divino é gratuito e que nada neste mundo pode pagar o sorriso de uma criança, a presença encantadora das brisas matinais, a queda de água cristalina do alto da cachoeira sobre o corpo, o abraço de um amigo, a fogueira nas noites frias do litoral, os recitais ao luar brilhante conquistado por um coração enamorado... A nova mulher possuía o mundo e o mundo a possuía: as fontes, as flores, as montanhas e vales, as praias e florestais, as praças e dunas, o céu e os pássaros...

No entusiasmo de decorar seu presente, começou a revirar seu passado e em meio às páginas amareladas dos diários, bonecas, bichos de pelúcia, recortes de revistas entre outros objetos antigos, encontrou pedaços lisos e espessos de pvc branco e neles desenhou paisagens primaveris; ali estava o velho e triste violão que sequiosamente esperava o dedilhar de sua inspiração; então, limpou-o de suas poeiras, afinou-o e trocaram melódicas carícias. Também avistou, misturada aos livros e álbuns de fotos, uma carta de sua antiga paixão em que apenas se lia esta citação de Hosea Ballou: a felicidade verdadeira é suficientemente barata, porém, nós pagamos muito caro por sua imitação. E assim, movida por um agradável pulsar que recriava sua história em luzes e cores inusitadas e promissoras, ainda com o pincel na mão, correu em direção à porta do quarto e para jamais esquecer deixou um recado para si mesma: para quem se alimenta da beleza, viver é a melhor recompensa.

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